As sufragistas e a Primeira Onda do feminismo
Sobre a Primeira Onda do feminismo e algumas algumas reflexões a respeito das características, os desafios e métodos do movimento feminista hoje.
O filme As Sufragistas (2015) resgata uma luta fundamental do movimento de mulheres e tem gerado importantes debates entre as feministas de todo o mundo. Através da história de uma trabalhadora de uma lavanderia que se envolve com o movimento sufragista, o filme retrata a luta das mulheres inglesas pelo direito ao voto no início do século XX. Neste texto, pretendemos abordar alguns aspectos da chamada Primeira Onda do feminismo, contexto que emergiu a luta sufragista e uma série de outras lutas pelos direitos jurídicos, políticos e sociais, e fazer algumas reflexões sobre as características, os desafios e métodos do movimento feminista frente à atual conjuntura política e econômica.
O que foi a primeira onda do feminismo? Contexto histórico, econômico e social.
Iniciada no final do século XIX, a primeira onda do feminismo foi um conjunto de movimentações protagonizado por mulheres em torno da luta por igualdade política e jurídica entre os sexos. O eixo que marcou esse primeiro período de atividade feminista foi a reivindicação por direitos iguais de cidadania (direito à educação, propriedades e posses de bens, divórcio, etc.), tendo como auge a luta sufragista pelo direito ao voto feminino, que aconteceu em diversos países no mundo.
Seu surgimento pode ser lido como um sintoma de um cenário histórico específico. Enquanto movimento social é um fenômeno essencialmente moderno, relacionado ao contexto de profundas transformações no campo do trabalho, da cultura, do Estado e da vida nas cidades, que surgiram de forma efervescente na Europa após a Revolução Francesa e a Revolução Industrial.
O pano de fundo das mobilizações da primeira onda do feminismo foi, portanto, o resultado dos desdobramentos produzidos por essa “dupla revolução” (econômica e política) nas sociedades europeias: o surgimento de um novo tipo de configuração social, a sociedade moderna. Ou ainda, a ascensão de um novo estágio do capitalismo – estágio que, como diz Marx no Manifesto Comunista, representa uma etapa do desenvolvimento histórico ao mesmo tempo progressista e contraditória em relação aos períodos anteriores, tendo em vista a combinação de aspectos positivos (urbanização, democratização, industrialização), com negativos (exploração, reificação, dominação).
Em termos econômicos, o nascimento dessa nova sociedade configurou um sistema que passava a concentrar a produção coletiva em fábricas, que se baseava pelo conflito entre classes (com a distinção entre trabalhadores destituídos de meios de produção e empregadores capitalistas) e que passava a incorporar mulheres e crianças como mão-de-obra barata. No âmbito político, houve a instituição democrática de uma comunidade de “cidadãos” livres possuidores de direitos sob a forma de Estados-Nação, bem como a consolidação de três correntes intelectuais e políticas, com visões de mundo divergentes sobre os rumos da sociedade emergente: o conservadorismo, o liberalismo e o socialismo.
A princípio, as bandeiras levantadas pela primeira onda do feminismo foram convencionalmente identificadas com a luta das chamadas “feministas liberais”, mulheres de classe média e alta, na época inspiradas pelas noções de Estado e Democracia fomentadas pela Revolução Francesa e pela ideia de ampliação dos direitos presentes na “Carta de Declaração dos Direitos do Homem” às Mulheres.
Entretanto, como bem mostra o próprio filme As Sufragistas, recém lançado no Brasil, elas não foram as únicas protagonistas; foram parte da primeira onda, mas não representam seu todo. No cenário de profundas transformações econômicas e políticas que marcaram a época moderna, com o avanço da indústria e da exploração do trabalho, as mulheres trabalhadoras cumpriram um papel histórico importantíssimo. Este é, inclusive, um grande acerto do filme, pois ele retrata este importante marco da história de luta das mulheres através da narrativa das experiências de uma jovem trabalhadora, protagonista do filme, ao invés de seguir a perspectiva comumente difundida, de que o movimento sufragista foi feito pelas liberais burguesas.
Mulheres trabalhadoras: luta contra a exploração e opressão.
A história do 8 de Março, conhecido como o Dia Internacional de Luta das Mulheres, por exemplo, demonstra o peso que as mulheres trabalhadoras tiveram: concebido pela primeira vez em 1910, durante o II Conferência Internacional de Mulheres Socialistas (que reuniu mulheres de mais de 17 países na Dinamarca com o objetivo de canalizar internacionalmente os esforços da luta pela obtenção do direito feminino ao voto), a data ganhou repercussão em 1911, após o profundo sentimento de revolta gerado pelo trágico incêndio de uma fábrica de camisas em Nova York, quando mais de cento e trinta trabalhadoras morreram carborizadas, vítimas da falta de condições de segurança de trabalho. A data consagrou-se definitivamente com o 8 de Março de 1917 na Rússia, quando aproximadamente 90 mil trabalhadoras manifestaram-se contra o Czar Nicolau II, contra as más condições de trabalho, contra a fome e a participação russa na 1ª Guerra Mundial (protesto conhecido como “Pão e Paz”).
Assim, um importante fator que certamente provocou forte influência para o fortalecimento do movimento de mulheres na primeira onda do feminismo foi o fato da classe trabalhadora, que estava concentrada em grandes centros fabris, ter se tornado ao longo do tempo numerosa e homogênea, não tardando de se rebelar contra as péssimas condições de vida em que estava submetida. Formas primeiras de reação, como as insurreições por meio de quebra de máquinas (movimento ludista) no começo do século XIX, logo se desenvolveram e foram suplantadas pela organização de trabalhadores/as como sindicatos e partidos, em torno de objetivos comuns da classe: redução da jornada de trabalho, assistência social pública, reforma do sistema eleitoral e do parlamento, etc..
E do ponto de vista das mulheres, motivos não faltavam para a revolta: se as condições de trabalho nas fábricas eram extremamente difíceis para o homem trabalhador da época, elas eram ainda piores para as mulheres. Devido ao estabelecimento de uma divisão do trabalho no interior do processo produtivo, à constante vigilância feita pela supervisão do capitalista nas fábricas e ao entendimento de que eram intelectualmente inferiores aos homens, as mulheres, junto às crianças, tinham longos dias de trabalho duro, recebendo menores salários comparado ao dos homens, com postos mais precarizados, obrigadas a lidar com todo tipo de assédio moral e sexual, além de receber um tratamento conservador dos maridos em casa, desempenhando ainda as tarefas domésticas, como cuidado dos filhos. Ou seja, as mulheres trabalhadoras viviam uma vida miserável, não possuíam praticamente nenhum direito civil e político garantido perante o Estado.
Se não faltavam motivos, entretanto, a escolha pela revolta também não era nada fácil, diante da vulnerabilidade material da maioria das mulheres, assim como pelo receio e medo de fazer frente à perseguição e repressão que eram destinadas àquelas que “subvertiam” a ordem social e os papeis estabelecidos de mãe, esposa, empregada, “ser inferior”. Por isso são tão louváveis as histórias registradas de mulheres que, por conta do caminho irreversível da conscientização da própria condição de exploração e opressão, doaram literalmente suas vidas pela causa, enfrentando repressão da polícia e da justiça, por não enxergarem outra saída senão lutar, assim como a protagonista Maud Watts em As Sufragistas.
Nesse sentido, não se pode deixar de destacar a dedicação e contribuição do feminismo da tradição socialista para a o encorajamento da militância de mulheres trabalhadoras da primeira onda.
A contribuição das socialistas.
A primeira contribuição das feministas socialistas está relacionada ao método, bem como aos estudos sobre as origens sociais da opressão à mulher. Como diz Clara Zetkin, figura histórica do feminismo na Alemanha, apesar da visão materialista da história não ter dado respostas prontas à questão das mulheres, ela “nos deu algo melhor: o método correto e preciso de estudo e compreensão da questão”. Desse modo, A origem da família, da propriedade privada e do Estado (1844) de Engels é considerado um livro que exerceu influência no embasamento teórico dessa vertente do feminismo, para compreender a raiz da atual condição das mulheres sob a ótica do desenvolvimento dos modos de produção.
Em seu estudo, Engels identifica que há uma mudança do papel da mulher na sociedade historicamente. A origem da opressão à mulher coincidiria com a criação da propriedade privada, isto é, com o momento em que o sistema comunitário vigente em sociedades tribais (sistema pré-capitalista, baseado em lares comunais, no matriarcalismo e no “direito materno”) é transformado pela perda do caráter público dos lares e pela exclusão da esposa na participação da produção social. Tal seria uma das formas mais antigas de exploração: a dependência econômica e a ilegalidade social do sexo feminino, em que o homem era proprietário e a mulher era propriedade.
Com o capitalismo, condições favoráveis à libertação das mulheres teriam surgido, ao haver novamente seu envolvimento na produção como força de trabalho, dando-lhes a possibilidade de independência econômica. Como aponta Engels, entretanto, o desenvolvimento capitalista gerou novas contradições, como a organização familiar capitalista, que colocava novamente a mulher em situação de subordinação em relação ao homem por meio do trabalho doméstico. Por isso, somente o socialismo poderia criar as condições plenas para tal libertação, ao apostar numa organização familiar que correspondesse ao papel das mulheres, tornando o cuidado da casa, o cuidado e a educação das crianças em assuntos de ordem pública.
Essas formulações sobre maneiras de acabar com a opressão à mulher – entre elas, o entendimento de que era necessário socializar o trabalho doméstico realizado pela mulher (alimentação, limpeza, a criação e educação dos filhos, etc.) por meio de serviços públicos garantidos pelo Estado (refeitórios, lavanderias, creches públicas, etc.) – serviram de base para importantes avanços acumulados durante a experiência soviética na Revolução Russa, um dos primeiros países em que as mulheres conquistaram o direito ao voto, ao aborto, ao divórcio e onde avançou-se bastante nos debates sobre libertação sexual e relacionamentos livres.
Movimento sufragista: diferentes sentidos para as diferentes classes.
Outra importante contribuição do debate socialista para a primeira onda do feminismo foi a compreensão de que a opressão feminina guarda íntima relação com a reprodução do capitalismo e assume formas diferentes, de acordo com a situação de classe de cada mulher. Dessa forma, a opressão sentida pela mulher trabalhadora é diferente da mulher burguesa, pois o espaço que cada mulher ocupa na sociedade faz com que existam diferentes graus de opressão. Isso explica, por sua vez, como mulheres de diferentes classes se engajaram nas lutas da primeira onda do feminismo por motivos ao mesmo tempo comuns e diversos.
De acordo com Clara Zetkin, as mulheres de alta classe dessa época (como a personagem coadjuvante Alice Haughton, no filme As Sufragistas) tinham propriedades e, assim, a possibilidade de desenvolver sua individualidade e viver como desejassem. Ao não se sentirem forçadas a realizar o trabalho doméstico, por exemplo, elas tinham condições de transferir seus deveres como mãe e dona de casa, pagando outra mulher para fazê-los. Sua contradição vem, entretanto, do fato de que essa condição não as tornavam isentas de serem oprimidas e subjugadas pelos maridos. E este seria o centro das demandas apresentadas pelo movimento feminista desse estrato social: lutar contra o mundo masculino de sua classe, numa batalha semelhante à que a burguesia travou contra a nobreza (ou seja, a batalha para remover as diferenças baseadas nas posses das propriedades).
Nos círculos da classe média e da burguesia intelectual, o problema não seria a propriedade, mas os sintomas da produção capitalista, relacionado à necessidade do sistema de possuir força de trabalho qualificada e cientificamente treinada, trabalho que foi designado aos homens dessa classe. Assim, as mulheres de classe média, ao não serem donas de propriedades como as de classe alta, precisariam garantir sua igualdade econômica perante os homens de sua classe por meio da reivindicação de: treinamento profissional igualitário e oportunidades iguais de trabalho. Enfrentavam, portanto, as razões masculinas listadas contra o trabalho feminino qualificado: “inferioridade do cérebro feminino” e “tendência natural” a serem mães, colocando-as também diante da necessidade de exigir direitos políticos e derrubar as barreiras que foram criadas contra a sua atividade econômica (como simbolizado pela personagem Edith Ellyn no filme).
Já no que diz respeito ao proletariado feminino, a reivindicação por direitos estava relacionada com a necessidade do capitalismo de explorar e buscar incessantemente por uma força de trabalho barata. Esta foi a razão pela qual as mulheres se tornaram parte da vida econômica naquele período, indo para as oficinas e para as máquinas em condições precárias. E elas iam pois acreditavam que assim poderiam construir uma vida melhor para seus filhos, mas a verdade é que elas ficaram totalmente separadas deles pela jornada de trabalho e passaram a estar submetidas à dupla opressão, a do âmbito privado e do público, da família e do trabalho. Assim, sua condição é bastante pior se comparada às mulheres das outras classes: não tinham propriedade, nem a chance de desenvolverem sua individualidade e intelectualidade. Com a quantidade cada vez maior de mulheres proletárias no mundo fabril, possuíam a contradição de serem produtoras como os homens, porém sem direitos políticos e sociais (condição expressada pela personagem protagonista do filme, Maud Watts).
Por isso, o movimento sufragista teve um significado tão importante na luta feminista, ao mesmo tempo em que possui diferentes sentidos para cada classe. O direito ao voto era uma reinvindicação comum a todas as mulheres. Mas ele possuía um significado mais amplo para as mulheres trabalhadoras. Enquanto para as burguesas a luta pelo direito de cidadania fazia parte da possibilidade delas exercerem sua condição de proprietárias e de pertencimento às classes altas, para as proletárias, essa luta por direitos se combinava e à luta mais ampla contra as suas condições sociais de vida e trabalho.
Assim, a conquista do direito ao voto foi um passo importante para a transformação da condição de vida dessas mulheres. Poder votar e ser votada, somada às outras conquistas democráticas da primeira onda, impôs uma derrota aos conservadores, aos assediadores, aos exploradores que se utilizavam do machismo para garantir seus espaços de privilégios econômicos e políticos. E o mais importante: ela foi fruto de um processo intenso de mobilização e entrega das mulheres pela causa, iniciando uma tradição de luta das mulheres pelos seus direitos. Por volta dos anos 1930 e 1940, o movimento sufragista foi vitorioso em diversos países. A conquista do voto na Rússia em 1917 serviu de exemplo para muitos deles. No Brasil, as mulheres conquistaram o direito de voto há 82 anos, em 1933, durante o governo de Getúlio Vargas.
Mulheres negras: protagonistas.
É imprescindível também destacar o papel histórico cumprido pelas mulheres negras nesses processos, pois seu protagonismo também não é comumente visibilizado nas histórias “oficiais” da primeira onda do feminismo.
Países como a Inglaterra, como é retratado pelo filme As Sufragistas, possuíam na época uma classe trabalhadora majoritariamente branca. Mas esse não era o caso dos Estados Unidos, por exemplo, em que a luta sufragista estava combinada com a luta contra da escravidão.
Histórias como a de Harriet Tubman, também conhecida por Black Moses, são muito importantes de serem destacadas nesse sentido. Tumbman foi um afro-americana abolicionista, que lutou pela liberdade, contra a escravidão e guiou dezenas de outros escravos para a liberdade. No pós-guerra, foi protagonista do movimento sufragista norte-americano, tornando-se uma de suas principais oradoras.
Reivindicar sua trajetória é importante pois a representatividade das mulheres negras é sem dúvida uma das principais marcas do atual momento do feminismo, responsável por evidenciar como a interseccionalidade, ou seja, a forma como o sexismo, a identidade de gênero e o racismo estão inextrincavelmente ligados na sociedade de classes.
Uma das grandes contribuições das redes sociais para o movimento feminista atual é a possibilidade apontar fatos e de difundir debates que a cultura racista insiste em esconder. Além disso, é fundamental para revelar que as mulheres negras possuem sua especificidade, como o fato de hoje no Brasil, o índice de mortes de mulheres negras ser 66,7% superior a morte de mulheres brancas de acordo com o Mapa da Violência .
E afinal, por que é importante retomarmos a história de luta dessas mulheres hoje?
Desde o final da primeira onda, o movimento feminista teve um primeiro período de refluxo (devido à Guerra Mundial) e ressurgiu em diferentes contextos, ampliando seus leques e pautas. Na verdade, esse tipo de “metamorfose” é constitutivo da história do feminismo: desde seu surgimento no século XIX, o movimento passou por diferentes momentos – ampliou-se e retraiu-se, mudou de cara, utilizou-se de diferentes métodos de mobilização, agregou novas demandas, enfim, atuou de acordo com a especificidade do contexto social, econômico e político em que se insere. Sua essência, entretanto, permanece: da reivindicação pelo voto ao direito ao corpo, à sexualidade, à voz e espaço das mulheres na sociedade e na política. A luta sempre foi pelo direito das mulheres, pela urgente transformação da sociedade e de seus valores.
Não há dúvida de que, desde 2011, há um crescimento do feminismo pelo mundo, e de que estamos passando por um desses novos momentos de ascensão. Após a primavera feminista de 2015 no Brasil, ficou claro que a luta das mulheres se encontra num novo patamar de mobilização, vivo e pulsante. Além de estar se revigorando, o feminismo também vem mudando e adquirindo uma nova cara: talvez o símbolo hoje não seja mais a queima de sutiã da geração dos anos 1960, mas as práticas de uma nova juventude, urbana, conectada na internet e nas redes sociais, que está forjando novos comportamentos, atitudes e gostos, se expressando e se relacionando por meio da valorização das diferenças e identidades, não aceitando mais nenhum dedo na cara, nenhum tipo de assédio e violência na escola, universidade, no meio de trabalho e na política.
E isso está diretamente relacionado com o nosso contexto social e político: é manifesto como o fortalecimento do feminismo te a ver, por um lado, com o fato de que vivemos, desde 2008, uma novo cenário de crise econômica e política; por outro, por estarmos presenciando importantes tentativas de construção de alternativas políticas frente a essa crise, protagonizadas em sua maioria por uma nova geração de ativistas – a geração das redes sociais, da informação, das identidades, dos novos comportamentos; a geração de jovens e trabalhadores que, no Brasil, vem despertando seu potencial transformador nas ruas em Junho de 2013.
Diante desse contexto, pode-se dizer que uma especificidade de nosso momento é de que as pautas democráticas vêm adquirindo novo peso, sobretudo nos meios mais jovens, o que tem colocado na ordem-do-dia o amadurecimento do perfil do movimento feminista, por meio da unificação da diversidade, processo que foi aberto sobretudo pela segunda onda nos anos 1960, com as reivindicações e protagonismo das mulheres negras, LBTs e de terceiro mundo.
Assim, mais do que nunca, o feminismo tornou-se uma poderosa ferramenta que alia os princípios de igualdade e de diferença entre as mulheres, reconhecendo a diversidade de classe, etnia, sexualidade e nacionalidade, e que as conquistas são sempre mais dolorosas quanto necessárias às mulheres mais pobres, periféricas, negras, com orientações sexuais ou identidades de gênero rechaçadas pela sociedade.
Entretanto, apesar do contexto ser diferente e de hoje termos novos elementos, é inegável que muitas das demandas das trabalhadoras da primeira onda seguem atuais. O capitalismo aprofundou suas contradições e crises, de forma que continua mostrando sua face mais cruel justamente para a vida das mulheres, sobretudo as mais jovens, pobres e negras, que ainda hoje ocupam os postos e cargos mais precarizados, sofrem com a desigualdade de renda entre homens e mulheres no mercado de trabalho, enfrentam o assédio na rua, o estupro, a violência doméstica e a morte por aborto clandestino.
Com efeito, retomar a primeira onda do feminismo, conhecer a história de lutas e vitórias que são hoje imprescindíveis à nós, deve nos servir de inspiração. Para entendermos melhor o momento em que estamos, para avançarmos e aprofundamos as lutas presentes e futuras, nada mais sábio que retomarmos as trajetórias, os motivos e a forma com que milhares de mulheres se movimentarem e romperam suas amarras por um outro tipo de sociedade ao longo da história. Através dessas histórias, adquirimos uma posição privilegiada para rever acertos e erros, sobretudo para lembramos que o protagonismo das mulheres está relacionado a um processo histórico e de que antes de nós, outras mulheres (mulheres de seu tempo, ou melhor, à frente de seu próprio tempo), provaram que a organização coletiva é o método fundamental para a conquista direitos.
Nosso desafio agora, diante do atual momento histórico e conjuntural, é, enfim, aprofundarmos nossas conquistas, não deixarmos que Eduardos Cunhas tentem impor retrocessos a elas. E parece que a saída é estarmos sensíveis e apostarmos na aliança entre novos métodos e práticas e o exemplo das experiências históricas anteriores; unirmos a diversidade das lutas, sem silenciamento; combinarmos as preocupações econômicas que atingem a classe trabalhadora e as mulheres trabalhadoras com o aspecto cultural da juventude, atualizando essa relação para as características políticas e sociais do capitalismo globalizado de nosso tempo.
Artigo originalmente publicado em juntos.org.br
Giovanna Marcelino é doutoranda em Sociologia pela USP, membra da equipe editorial da Revista Movimento e do Juntas! SP