Organizar a resistência feminista para enfrentar o Bolsonaro, o fascismo e o autoritarismo em todo mundo
Criar uma resistência capaz de fazer frente ao seu projeto de poder (texto de 2018).
Vivemos tempos de indeterminação. A vitória de Jair Bolsonaro à presidência representa o fim do jogo político das últimas décadas no país, e a conformação de um novo tipo de regime, ainda em transição. Já sabemos que os pilares que sustentaram esse governo passam pela implementação de uma agenda de ataques severos aos direitos humanos, além disso os ajustes fiscais, as privatizações e a desnacionalização da economia, articulados por uma conformação política de extrema-direita, são o tom do programa econômico desse regime. Porém ainda há muito em aberto: trata-se de um regime em gestação, por enquanto frágil, no qual a resistência e a luta devem ser determinantes.
Esse elemento de fragilidade se demonstrou, já no processo eleitoral, de forma bastante intensa. A polarização dividiu o Brasil. Apesar de Jair Bolsonaro ter saído fortalecido, com 39% dos votos entre os eleitores aptos, a eleição de 52 deputados, 4 senadores e 3 governadores de seu partido, outro elemento também imperou durante as eleições: a enorme politização do movimento democrático e, com ela a entrada da luta política com movimento #EleNão. Como mostraram as pesquisas eleitorais no segundo turno, a polarização elevada levou a um impasse político nas maiores cidades, nas quais a maioria das mulheres votou contra Bolsonaro. Esse número chegou a 59% se consideramos os votos das jovens mulheres. Entre os mais pobres, segundo as mesmas pesquisas, Bolsonaro também perdeu. Entre negros, LGBTs e jovens os índices também contrariaram sua vitória. Nós somos a resistência!
Processos similares têm ocorrido em diversos países do globo. Bolsonaro é uma espécie de Trump brasileiro que tem traços similares às ultra-direitas que tem aparecido no mundo, como Grécia, Itália, Espanha e Alemanha. E em todos eles podemos identificar elementos comuns. Em primeiro lugar uma solução reacionária à grave crise econômica mundial que ainda não encontrou respostas contundentes e, em segundo, o questionamento conservador às liberdades (e em especial das mulheres, negros e negras e LGBTs), elemento que se intensifica no Brasil cuja democracia é bastante frágil (se comparada aos EUA, por exemplo).
Para as mulheres esse cenário se converte em ataques diretos, sejam eles econômicos — como a diminuição dos direitos previdenciários e trabalhistas — ou sociais — como a possibilidade de maior criminalização do aborto, proibição dos debates sobre gênero e violência nas escolas, entre outros. Bolsonaro é uma figura extremamente machista, cuja campanha e atuação parlamentar demonstraram seu ódio por qualquer tipo de manifestação em defesa dos direitos das mulheres. Seu projeto político representa o pólo oposto ao das feministas e, por isso, nossa organização para os desafios do próximo período deve procurar refletir profundamente o que levou esse projeto ao poder, suas fortalezas e fraquezas e, principalmente, como criar uma resistência capaz de fazer frente a ele. Por hora destacamos alguns pontos:
- É preciso entender a base eleitoral de Bolsonaro em sua diversidade. O fenômeno “bolsonarista” atingiu inúmeros perfis, que vão desde aqueles mais ligados à ultra-direita fascista até aqueles que apenas expressam uma revolta com o cenário de corrupção e crise econômica. O anti-petismo também foi um elemento determinante. Colocar todas essas pessoas no mesmo saco do fascismo é perigoso, já que o governo Bolsonaro pode decepcionar rapidamente: o ajuste econômico e suas relações com os setores mais questionáveis da política podem terminar com a esperança de muitos. E precisamos estar prontas para apresentar alternativas para o sentimento de desilusão e traição que pode surgir!
- O fenômeno Bolsonaro configura também uma resposta conservadora à . explosão dos movimentos feministas e pelas igualdades no Brasil. No último período temos sido linha de frente no enfrentamento na luta por mais direitos e o fenômeno Bolsonaro veio como uma reação dos setores ultra-conservadores do Brasil as nossas lutas. A cara da resistência é negra, feminista, lgbt, periférica — é a cara de Marielle Franco. Por isso, nossa luta por justiça a memória da vereadora do PSOL deve ser prioridade, pois o que está em jogo é a sobrevivência de milhares outras Marielles. Em meio a isso, nosso esforço coletivo deve apontar para um programa alternativo, radicalmente democrático e capaz de contemplar as demandas dos 99% do povo, as pautas feministas, anti-racistas e LGBTs.
- Bolsonaro cresceu imensamente no pleito ao trazer o tema da segurança pública para o centro das atenções. Sua proposta de armamento e militarização tem como pano de fundo o desmonte dos programas sociais e da educação, um profundo desrespeito aos direitos humanos, em especial daqueles que se encontram no sistema prisional, e a enorme possibilidade de nacionalização das milícias. E o novo presidente já deixou claro durante a corrida eleitoral quem será o alvo: o povo negro e pobre das periferias brasileiras, onde a orientação da polícia é entrar atirando para depois ver o resultado. O resultado dessa guerra já é conhecido e deve se aprofundar imensamente: o genocídio da população negra e os números incontáveis de mães que esperam seus filhos sem retorno. Como sementes de Marielle precisamos nos contrapor contundentemente a esse projeto!
- É preciso superar os erros da esquerda! A esquerda tradicional brasileira, representada especialmente pelo campo petista, cometeu muitos erros e traições durante seus governos e é preciso refletir profundamente sobre eles para que possamos criar uma alternativa nova, capaz de reconquistar a confiança do povo. A aposta na inclusão social apenas pela via do consumo, a ausência de políticas realmente transformadoras da vida das mulheres, LGBTs e negritude brasileiras e as relações íntimas com os setores mais questionáveis da elite e da casta política são fatores importantes que levaram parte considerável da população a adotar uma postura anti-petista. É claro que houveram setores que procuraram se aproveitar desse sentimento, sequestrando bandeiras que historicamente foram levantadas pela esquerda brasileira, como o combate à corrupção, para golpear o país e aplicar seu projeto conservador e neoliberal. Mas isso só foi possível pois a esquerda não se dispôs massivamente a disputar as ruas e a narrativa da crise econômica, procurando muitas vezes se salvar pela via do balcão de negócios e não da aliança com o povo. Nossa resistência precisa construir algo radicalmente novo!
- A resistência é internacional. Como mencionado, projetos semelhantes ao de Bolsonaro (ainda que com especificidades nacionais bastante diferentes) têm crescido no mundo todo. Mas também tem crescido o pólo contrário, radicalmente democrático, feminista e anticapitalista. Os últimos 8 de março foram caracterizados pela resistência à extrema-direita em todo o planeta — e a greve internacional das mulheres demonstrou que as mulheres trabalhadoras seguem aglutinando forças contra os poderosos de todo mundo. Como Nancy Fraser caracteriza: da África do sul à Polônia, da Espanha à Argentina, dos Irã aos Estados Unidos, as mulheres — pobres e não-brancas em especial — se enfrentam homens que amam fardas e detestam a democracia. É preciso nos conectarmos com essas experiências, estabelecendo uma rede internacional de solidariedade e luta contra a barbárie dos conservadores. É possível!
Mas o que fazer diante desse cenário? Lutar contra Bolsonaro é uma necessidade de todas nós que acreditamos em um Brasil democrático e em um mundo livre de opressão. E, para isso, precisamos confiar na nossa própria força. Nos últimos anos as mulheres deram incríveis demonstrações disso e saíram vitoriosas: contra o Cunha, contra o fechamento das escolas e contra a reforma da previdência. E já nesse ano o movimento #EleNão tomou o Brasil nas redes — como o grupo com mais de 4 milhões de mulheres unidas contra Bolsonaro — e nas ruas — como as grandes manifestações do dia 29 de setembro.
A tarefa das feministas deve ser agora um esforço duplo: por um lado, refletir acerca do processo que nos trouxe até aqui (esforço que procuramos fazer nesse texto para partirmos de um pontapé inicial), compreendendo nossas falhas enquanto esquerda, mas também a localização do movimento feminista como vanguarda das lutas, para enfim entender os novos desafios que nos serão impostos, e por outro, solidariedade e organização. A luta feminista será a principal trincheira contra Bolsonaro, uma vez que somos nós mulheres — em especial as mulheres negras e periféricas — as primeiras a sentirmos o desmonte da democracia, dos direitos conquistados e o ataque conservador, violento e autoritário do governo Bolsonaro. Além disso, fomos nós mulheres as principais inimigas de Bolsonaro durante os últimos anos, denunciando sua prática autoritária, misógina e racista.
Assim, é fundamental estejamos organizadas coletivamente, pois acreditamos que juntas somos mais fortes e dessa forma temos condições concretas de fazer frente aos conservadores: precisamos organizar redes de discussão e propagação de informações, presenciais e via redes sociais, e disputar a narrativa sobre o país, convencendo as pessoas de que a democracia e os direitos sociais são pilares essenciais para uma sociedade saudável. É preciso que voltemos aos nossos locais de atuação, sejam escolas, universidades ou no mercado de trabalho, para recrutar mais mulheres para as fileiras de enfrentamento não somente ao Bolsonaro, mas ao seu discurso e ao que ele representa.
O próximo período exige coragem e união — ninguém solta a mão de ninguém. E assim como em 2017 e 2018, o 8 de março será ainda mais importante em nossa luta e organização nesse primeiro momento de resistência — especialmente por março não ser somente o mês de luta das mulheres mas o mês no qual se completará um ano do assassinato de Marielle Franco. Façamos nossas vozes ecoarem e se multiplicarem, gritemos Juntas! Convidamos a todas para virem juntas conosco fazer a resistência. A luta das mulheres muda o mundo!