A luta das mulheres vocaliza a luta pela libertação humana: reflexões sobre o feminismo marxista
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A luta das mulheres vocaliza a luta pela libertação humana: reflexões sobre o feminismo marxista

É por ocuparem a base da pirâmide de sustentação do capitalismo que as mulheres da classe trabalhadora são a chave para a mudança de lógica da sociedade.

Camila Barbosa e Renata Moara 6 jun 2020, 00:15

A história de libertação das mulheres é a história da revolução. As marxistas do século XIX e início do século XX, como Rosa Luxemburgo, Alexandra Kollontai e Clara Zetkin, aportadas pelas análises de Marx e Engels, construíram uma estrutura teórica ligando a luta pela libertação das mulheres à luta pelo socialismo. Somente a partir da tradição marxista foi possível chegar à raiz da opressão às mulheres com base em sua localização na sociedade de classes. Um ponto de partida para refletir sobre a inconteste relação entre opressão de gênero e capitalismo é, então, nos perguntar: qual é o papel das mulheres na chamada sociedade de classes?

No interior da estrutura da sociedade capitalista identificamos mulheres da classe dominante, que reproduzem herdeiros, e mulheres da classe trabalhadora, que reproduzem força de trabalho. Existe, portanto, uma diferença marcada pela classe no que diz respeito à opressão de gênero, considerando que atinge em níveis diferentes as mulheres a depender do papel que cumprem na reprodução social. O trabalho doméstico não remunerado executado pelas mulheres da classe trabalhadora, à medida que também alivia financeiramente o capitalismo, fortalece a sua manutenção. É justamente por ocuparem a base da pirâmide de sustentação do capitalismo que as mulheres da classe trabalhadora são a chave para a mudança de lógica da sociedade.

A primeira condição para a libertação das mulheres é a quebra desses papéis, o que só será possível através de uma revolução socialista que compreenda a emancipação humana como totalidade. Foi esse o mérito da auto-organização das mulheres socialistas da Revolução Russa que possibilitaram, pela primeira vez na história da humanidade, a construção e implementação de um programa de justiça de gênero conectado ao componente de classe.

Clara Zetkin foi um grande nome que liderou a secretaria de mulheres do Partido Social-Democrata da Alemanha. Sua contribuição reside especialmente no crescimento da participação feminina no partido. Esse movimento de trabalhadoras alemãs foi crucial para o movimento internacional de mulheres socialistas da Segunda Internacional, que, para além de Zetkin, ainda contava com a participação de outras dirigentes, como Kollontai e Luxemburgo.

Alexandra Kollontai, por sua vez, através do livro “A Base Social da Questão da Mulher”, imprimiu um aporte fundamental para a análise marxista da opressão sofrida pelas mulheres. Kollontai coloca em debate as diferenças entre as classes das mulheres, onde diz que ainda que o mote seja o mesmo – “libertação das mulheres” – a largada é diferente entre as mulheres da classe dominante e da trabalhadora. Kollontai também emprega esforço para colocar a luta das mulheres no debate da classe em geral, inclusive com os homens trabalhadores.

Essas revolucionárias impulsionaram um movimento de mulheres que culminou em 1919 na criação do Jenotdiél (Departamento de Mulheres). Para a Rússia pós- revolução, o organismo representava a tarefa da construção de uma nova sociedade, debruçada particularmente sob quatro eixos: a socialização do trabalho doméstico (alimentação, limpeza, criação e educação dos filhos por meio de serviços públicos garantidos pelo Estado), a plena igualdade entre gêneros (direitos políticos iguais), a livre união (direito ao divórcio e substituição do casamento religioso pelo civil) e, consequentemente, o definhamento da família nos moldes burgueses. Também a partir dessa luta firmou-se a legalização do aborto, direito que ainda hoje muitos países mais avançados do capitalismo ainda não efetivaram. As conquistas logradas pelas revolucionárias marxistas retrocederam em razão das pressões devastadoras da Guerra Civil e da contra-revolução stalinista que burocratizou o Estado soviético (tornando o aborto ilegal mais um vez e dificultando o acesso ao divórcio, por exemplo), mas seu legado permanece sustentando gerações de lutadoras que disputam um movimento feminista com uma dimensão estratégica, ou seja, comprometido com a transformação radical das estruturas profundas da totalidade social.

Desde então, a cada fratura histórica e crise cíclica o capitalismo se reinventa recuperando o que foi parte de sua queda, fenômeno que permitiu o nascimento de tendências como o feminismo liberal no movimento de mulheres. Nós, que estamos à margem da miséria capitalista e na vanguarda das lutas da classe, sabemos que de pouco vale o acesso aos espaços simbólicos de poder sem uma ruptura antissistêmica que garanta a real justiça de gênero aliada à classe. Por isso, um importante movimento impulsionado por feministas marxistas como Nancy Fraser, Angela Davis e Cinzia Arruzza tem guiado a nossa elaboração: o feminismo das 99%. Se trata de uma referência a totalidade de mulheres – negras, LGBTs, imigrantes, trabalhadoras, etc. – que sustentam o mundo e, sob a bandeira do anticapitalismo, buscam reconectar as lutas identitárias às lutas da classe. Uma noção dialética e marxista sob a composição da classe trabalhadora que permite enxergar a opressão de gênero indissociável da opressão de raça, ambiental, internacional, enfim, capitalista. Em meio a mais grave crise sanitária das últimas décadas e a necessidade de articular uma rede em defesa da vida, um espelho do que Nancy Fraser chama do “fermento emancipatório dos tempos”.

Artigo originalmente publicado no Jornal do Juntos!.

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