Direito a saúde: breve ensaio sobre o direito ao aborto

Direito a saúde: breve ensaio sobre o direito ao aborto

Por que o aborto ainda é crime no Brasil?

Zoe Matos 27 ago 2020, 09:10

Ser mulher em um país como o Brasil é devastador e é correr risco de morte. Milhares de mulheres são violadas todos os anos de diversas formas, e muitas vezes essas violações começam em casa e são naturalizadas por quem deveria nos proteger. Nós, mulheres, temos uma longa história de lutas por nossos direitos; o acesso à saúde de qualidade, por exemplo, apesar de já ser um direito, a realidade do Brasil mostra que tal direito ainda está muito distante de ser garantido, principalmente às mulheres pobres e negras. Um assunto importante sobre saúde pública e saúde da mulher é o aborto, tema que é evitado por muitos, criminalizado e estigmatizado, porém que é real e está presente em todas as classes da sociedade brasileira; mulheres de todas elas abortam, mas apenas aquelas pobres e de maioria negra morrem e sofrem com as consequências do aborto clandestino.

O aborto pode ocorrer de duas formas: a espontânea, quando ocorre de maneira natural; e a induzida, quando é realizado um procedimento médico ou ingestão de remédio para finalizar a gestação.

O aborto no Brasil ainda é ilegal e pode gerar detenção de um a três anos para a mulher que provocar o aborto em si mesma ou que solicite a outra pessoa que o realize. Neste último caso, a pessoa que realizou o procedimento pode ser condenada à pena de prisão de um a quatro anos. Quando o aborto é provocado sem o consentimento da gestante, a pessoa que o provocou pode pegar de três a dez anos de reclusão.

Há algumas situações em que o aborto não é crime no Brasil, como quando a gravidez é resultado de um estrupo, quando a gravidez oferece risco à vida da grávida e quando o feto é anencefálico. Dentro destas situações, à mulher é garantido o direito de buscar o aborto de forma segura pelo SUS (Sistema Único de Saúde), conforme a Lei brasileira. Porém, quando falamos de saúde da mulher, isso envolve também o aborto, de forma que estamos muito distantes de uma realidade justa. O aborto no Brasil não é exceção, não é um caso especial, é uma realidade e é comum.

O direito ao aborto legal nas situações já especificadas ainda é um desafio, pois encontram-se poucos profissionais que estejam preparados e que se disponham a separar suas crenças e valores de sua atuação médica, fazendo com que essa mulher que vai em busca de seu direito encontre obstáculos e muitas vezes sendo rotulada e discriminada.

A segunda situação é o aborto ilegal/clandestino. A criminalização não impede os 1 milhão de abortos induzidos e suas sequelas que acontecem todos os anos: são mais de 250 mil mulheres hospitalizadas, e 203 mulheres mortas devido a complicações, conforme dados dos anos de 2016 e 2017 apresentados em 2018.

A partir do explanado percebemos que criminalizar e punir não impede ninguém de fazer aborto, na verdade coloca a vida de mulheres em risco. Então fica a pergunta: “por qual motivo criminalizar?”

Segundo Anjos (2013), a criminalização do aborto no Brasil é estratégica, pois favorece o lucro de pessoas, como médicos que fazem abortos caros, e para a alta classe, enquanto a nossa sociedade fica presa em uma ideologia conservadora que favorece a ilegalidade, criminaliza e rotula as mulheres, não dando espaço para analisar quem é essa mulher, seus direitos, vontades e vida  (ANJOS et al 2013 apud SOUZA; DINIZ; COUTO, 2010).

O aborto ilegal é inseguro, mata e sequela muitas mulheres não pelo procedimento em si, mas pelas condições em que este ocorre.

O aborto inseguro é uma injustiça social, o índice de mortalidade decorrentes do aborto reflete as desigualdades sociais, atingindo as pessoas mais vulneráveis da população, mulheres pobres, mulheres negras, mulheres com baixa escolaridade e menor acesso à informação (ANJOS et al 2013 apud MARTINS; MENDONÇA, 2005).

É nosso dever lutar contra movimentos conservadores que perpetuam esse sistema que fecha os olhos para as necessidades e vida das mulheres para suprir seus próprios valores e fé. Esse movimento conservador construiu no Brasil uma estratégia de combinar a cadeira legislativa com o púlpito em um só poder, uma autoridade política-religiosa que foca nos valores tradicionais, que incluem o controle da sexualidade e reprodução das mulheres (MACHADO, 2017).

Criminalizar o aborto impõe às mulheres limitações sobre o seu próprio corpo, limitações que os homens não possuem. Por isso se os homens engravidassem, o aborto já seria legal. Miguel (2012) ainda complementa afirmando a importância da laicidade do Estado para que os direitos sejam preservados e respeitados.

No contexto político atual passamos por uma onda de conservadorismo; nas eleições de 2018 foram eleitos vários parlamentares, também o presidente, por meio de uma ideologia conservadora que guiou manifestações nos últimos 5 anos, e a própria eleição de 2018. Há duas semanas, um caso perturbador e devastador foi notícia de proporção nacional: uma criança de 10 anos, que era estuprada desde os 6, ficou grávida de seu agressor. Essa criança teve o seu nome e hospital onde seria realizado o aborto divulgado, a partir do que um grupo de conservadores foi para a porta do hospital chamando a criança de assassina, deixando claro que ainda não estamos nem perto de uma sociedade igualitária e justa. Quando a necessidade de aborto por uma criança vítima de violência é recebida com ódio por pessoas que afirmam lutar pela vida, estes estão a violando pela segunda vez. São 20 mil meninas que engravidam antes dos 15 anos todos os anos no Brasil, que são violentadas, estão sem acolhimento e acabam sendo vitimadas mais uma vez.

A proibição do aborto traz à tona problemas morais, religiosos, subjetivos, de saúde, gênero, classe e raça.

O aborto induzido é um tema bastante estigmatizado, é alvo de várias críticas e discussões, principalmente quando falamos dos aspectos legais, bioéticos e religiosos. No Brasil, o aborto é um grave problema de saúde pública, que causa muitas mortes maternas devido à criminalização. A mulher que realiza o aborto induzido não é bem vista pela sociedade, já que a maternidade é um destino imposto cultural e historicamente (REBOUÇAS, 2010).

Como feministas, sabemos que quando falamos de aborto falamos de saúde da mulher, e não devemos nos limitar apenas à saúde física e biológica; o aborto é, principalmente em uma sociedade como a nossa, além de ilegal e extremamente estigmatizado, também questão de saúde mental. Temos que falar da saúde psicológica, e pensar a mulher como ser inteiro biopsicossocial.

Segundo Scavone (2008), devemos pensar e considerar o significado simbólico da interrupção de uma gravidez indesejada, pois aí entra em questão a realização da maternidade, que é considerada como um processo importante na vida de uma mulher pela nossa cultura.

Através de estudos, observa-se que a saúde mental associada ao abortamento, coloca as mulheres em maior risco de depressão e estresse pós-traumático, principalmente aquelas que relatam violência física, emocional ou abuso sexual (NOMURA et al (2011).

O sofrimento psicológico decorrente do abortamento não é causado pelo procedimento de interromper a gravidez, pois a maioria das mulheres acreditater feito a escolha certa. O que realmente leva o sofrimento a essas mulheres são os estigmas sociais que o aborto possui: uma mulher que aborta é vista como uma assassina, a mulher que aborta está só, sem ninguém, sem o apoio da família, do parceiro ou de profissionais preparados. Há um ciclo vicioso e perverso em que a criminalização do aborto perpetua o estigma e, por sua vez, o estigma legitima a criminalização do aborto. Este ciclo possibilita a existência de um sistema composto de políticas, leis e práticas que discriminam as mulheres e violam os seus direitos humanos (ZANELLO e PORTO, 2016).

A pesquisa de Rebouças (2010) revelou que a experiência do aborto é uma possibilidade na existência da mulher, compreendido como uma escolha, escolha essa vivida com muito sofrimento, pois a mulher se posiciona contra tudo que foi lhe ensinado e destinado culturalmente. O aborto traz à tona os sentimentos de culpa, desamparo e solidão, pois a escolha por ele se deu pelo desejo de dar continuidade a projetos no futuro. O atendimento prestado pelos profissionais de saúde às mulheres nessa situação revela a necessidade de reestruturar o funcionamento do SUS para que essas mulheres possam ter acesso ao direito à saúde de forma integral.

O aborto é crime no Brasil, porém isso não faz com que o procedimento não aconteça ou pelo menos diminua, pelo contrário; vivemos uma realidade de abortos clandestinos, e a maioria inseguro, e esse é um problema complexo de saúde pública. Quando criminalizamos, fechamos os olhos para as necessidades das mulheres que têm o direito à saúde passar e as vemos passar por processos que são inseguros e que levam a complicações e até a morte. Essa criminalização é, sim, uma violação aos direitos humanos, sexuais e reprodutivos. Ignorar que o aborto acontece mesmo sendo crime é permitir que mulheres, e principalmente as mais vulneráveis, sofram sequelas ou morram.

Como movimento feminista em defesa dos direitos e vida de cada mulher e menina, exigimos a legalização do aborto e que esse seja feito pelo SUS de forma gratuita e adequada; exigimos que os profissionais de saúde estejam preparados para atender e realizar o procedimento de forma técnica e sem julgamento; exigimos que as vidas das mulheres sejam respeitadas, que possamos ser mais do que estatística; exigimos o fim da cultura do estupro e que nossas crianças possam continuar a ser crianças, e não mães. Nossa luta como feministas é pelos direitos e vida das meninas e mulheres, sempre contra as estruturas patriarcais que sustentam essas violências e desigualdades.

As complicações provocadas por abortos clandestinos e inseguros são diversas, afetando as mulheres de forma biopsicossociais. O aborto em condições desfavoráveis à saúde é uma violação dos direitos humanos, que afeta principalmente mulheres pobres e negras. É dever do estado garantir o direito à saúde, e o acesso a procedimentos seguros (ANJOS et al, 2013).

REFERÊNCIAS:

ANJOS, Karla Ferraz dos; SANTOS, VANESSA CRUZ; SOUZAS, Raquel; EUGÊNIO, Benedito Gonçalves. ABORTO E SAÚDE PÚBLICA NO BRASIL: REFLEXÕES SOB A PERSPECTIVA DOS DIREITOS HUMANOS. 2013.

http://www.cofen.gov.br/uma-mulher-morre-a-cada-2-dias-por-causa-do-abortoinseguro-diz-ministerio-da-saude_64714.html
https://examedaoab.jusbrasil.com.br/artigos/414535657/aborto-o-que-diz-a-lei

MACHADO, Lia Zanotta. O ABORTO COMO DIREITO E O ABORTO COMO CRIME: O RETROCESSO NEOCONSERVADOR. 2017.

MIGUEL, Luis Felipe. ABORTO E DEMOCRACIA. Universidade de Brasília. 2012.

NOMURA, Roseli Mieko; BENUTE, Gláucia Rosana Guerra; AZEVEDO, George Dantas de; DUTRA, Elza Maria do Socorro; BORSARI, Cristina Gigliotti; REBOUÇAS, Melina Séfora Souza; LUCIA, Mara Cristina Souza de; ZUGAIB, Marcelo. DEPRESSÃO, ASPECTOS EMOCIONAIS E SOCIAIS NA VIVÊNCIA DO ABORTO: COMPARAÇÃO ENTRE DUAS CAPITAIS BRASILEIRAS.2011.

REBOUÇAS, Melina Séfora Souza. O ABORTO PROVOCADO COMO UMA POSSIBILIDADE NA EXISTÊNCIA DA MULHER: REFLEXÕES FENOMENOLÓGIGO-EXISTENCIAIS. 2010.

SCAVONE, Lúcia. POLÍTICAS FEMINISTAS DO ABORTO. Universidade Estadual Paulista. 2008.

ZANELLO, Valeska; PORTO, Madge. ABORTO E (NÃO) DESEJO DE MATERNIDADE(S): QUESTÕES PARA A PSICOLOGIA.2016.


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