“Mata teu pai”: o feminismo no teatro
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“Mata teu pai”: o feminismo no teatro

Ensaio feminista sobre a peça “Mata teu pai”.

Mariana Arantes 7 set 2020, 15:38

Em “Estudos sobre o teatro”, o dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956) questiona: “Poderá o mundo de hoje, apesar de tudo, ser reproduzido pelo teatro?” Apesar de tudo. Apesar do forte calor, apesar dos silêncios, apesar do desmatamento, apesar da violência, apesar do não sorriso, apesar da fome, apesar da despedida, apesar de todos os pesares. O teatro conseguirá reproduzir o mundo? Talvez seja menos exigente solicitar uma reprodução do Brasil apenas. Afinal sobre os ombros brasileiros há “apenas” resquícios da colonização, apenas 200 de escravidão, dizimação dos povos tradicionais, rupturas políticas, 20 anos de ditadura militar, golpes.


Poderá o Brasil de hoje ser reproduzido pelo teatro? Por esse questionamento se instauram aberturas para pensar que a representação teatral não é mais suficiente para provocar mudanças. O encenar então propõe novas formas de dizer e de agir na cena, no entanto, o que não se modifica é o ato de contar estórias. O teórico Roland Barthes (2001) pontua que o nosso “universo é infinitamente sugestivo”, por isso o não cessar
da narração. O teatro funciona, então, na sociedade como uma das possibilidades do não silenciar, do contar e do recontar. Por esse repisar de estórias infinitamente possíveis, retomo um mito grego conhecível como aquele no qual a personagem mata os filhos. Medeia. Tragédia reescrita por Eurípedes na Grécia Antiga que retrata o exílio da personagem em Corinto com os filhos e o marido Jasão. Após a traição dele com a filha do Rei de Corinto, Medeia mata seus filhos como forma de negar a Jasão a
possibilidade de herdeiros.


Há nessa narrativa euripidiana, em linhas gerais, uma estigmatização de disputa entre a Medeia e a atual esposa de Jasão, há uma ênfase no caráter de bruxa da personagem, utilizando de seus feitiços para o mal; há a ênfase no episódio do matricídio, o qual a culpa está apenas sobre os ombros da mãe. No entanto, é possível deslocar essa estória tantas vezes já dita. A tragédia de Medeia foi recontada em diferentes épocas e contextos, mas destaco a mais recente proposta de releitura dessa estória. Grace Passô, dramaturga belo-horizontina, publica em 2017 a obra “Mata teu pai”. O texto para o teatro ressalta a voz de Medeia, é um monólogo e como tal apenas a personagem tem espaço para dizer e explicar suas dores. Por isso reitero a questão do teatro, não a partir de sua possibilidade de representação, mas como possibilidade de recontar narrativas, recontá-las a partir de novas vivências e de novos contextos. A Medeia de “Mata teu pai” clama: “preciso que me escutem” para suas filhas, essas bem marcadas no feminino do início ao fim da dramaturgia, perante as quais Medeia também suplica: “para de achar que a gente é destino”. Falas que demarcam a potência do texto de Passô para retomar uma personagem já lida e relida, mas agora contextualizada em um Brasil do século XXI.


A Medeia recontada em “Mata teu pai” apresenta discussões sobre a
maternidade, sororidade, legalização do aborto, racismo e desterritorialização. Há uma desconstrução dessa personagem ao privilegiar uma relação com outras mulheres, todas como Medeia, imigrantes. A personagem principal dialoga com a cubana, a judia, a
haitiana, a paulista, a síria, não estabelecendo disputas entre elas, mas reconhecendo suas semelhanças na opressão do patriarcado, assim como, suas diferenças. De tal modo, Medeia reconhece sua limitação, como na seguinte fala: “se eu não me lembro do rosto dela é porque no meu sangue corre a doença do opressor. Ainda.” A Medeia reescrita por Passô conta sua história às suas filhas, às amigas e às companheiras sem estabelecer hierarquias, mas sim estabelecendo uma rede de apoio entre essas mulheres. Medeia reconta sua história pisando em solo brasileiro, no Brasil do século XXI, mas no qual ainda estruturas precisam ser destruídas para a plena vivência e liberdade da mulher. “eu vim aqui reescrever essa história”. Cabe pensarmos, portanto, o teatro como forma de contar o Brasil. Não há uma reprodução, mas há um demonstrar de situações em cena que nos cobram o pensar e o repensar estruturas econômicas, sociais e políticas
que não servem aos nossos corpos, que os aprisionam. No final da dramaturgia há uma troca, pois se na Medeia de Eurípedes quem morria eram os filhos, na Medeia de Passô, a personagem deflagra a figura do Jasão como o patriarcado a ser destruído, e diz “se vocês guardassem de verdade a justiça dentro do coração de vocês. Vocês o matariam.” Medeia sempre a personagem indomável e sempre recontada para proferir as urgências
de seu tempo. O que demarca a força do teatro na apresentação de um diálogo com nosso contexto social.
As opressões reincidem ainda sobre os nossos corpos de mulheres, mas há
deslocamentos também por meio do teatro, possibilitando a percepção e a instauração de mudanças necessárias para a efetiva liberdade de nossos corpos.

Texto “Mata teu pai” encenado na versão vídeo e disponibilizado no canal:
https://www.youtube.com/watch?v=ftMOty5adVQ&t=1530s


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