O feminismo diante da crise
Como as feministas podem avançar em um projeto de poder diante da crise que vivemos.
O Brasil vive hoje uma das maiores crises econômicas de sua história, crise que pesa sobre a população mais pobre, a negritude e as mulheres e que curiosamente não afeta os mais ricos. A precarização do trabalho vem se desenvolvendo desde as reformas trabalhista e da previdência, somada à falta de políticas de enfrentamento às empresas bilionárias responsáveis pela uberização. Além disso, vem cada vez maiores o desemprego e a informalidade. Não bastasse, nas últimas semanas, vimos o aumento desenfreado do preço de alimentos básicos que coloca a população mais pobre do país em situação de absoluto desespero. Apesar de no Brasil a maior parte das famílias ainda serem chefiadas por homens, são as famílias monoparentais e mais pobres as chefiadas por mulheres. São elas que irão mais facilmente perder seus empregos e entrar para a informalidade. Além disso, serão aquelas responsabilizadas pelo cuidados de seus filhos e dos idosos. A precarização dos serviços públicos, exponenciada pelo teto dos gastos, aumenta ainda mais a sobrecarga de cuidado que recai sobre as mulheres da classe trabalhadora.
Outro efeito da crise econômica que vivemos é o aumento da violência doméstica. Quando todos os mecanismo de organização social são desarticulados, a coerção e a violência emergem como forma de sociabilidade possível, é que pesa sobre os elos mais fracos da sociedade, como mulheres e crianças. Ao mesmo tempo, essa desarticulação as impede de construir alternativas à essa violência, tanto pela dependência financeira, como por não ter com quem contar e pela falta de acesso à rede de assistência social e de saúde.
A situação desastrosa do país se choca com os últimos dados da bolsa de valores. Se os pequenos negócios passam por grandes dificuldades, sem políticas públicas voltadas a esses durante a pandemia do covid-19, as corporações transnacionais se aproveitam dessa situação lucrando mais do que nunca. Tanto no Brasil, quanto no resto do mundo o patrimônio dos bilionários aumenta de maneira furiosa. A Amazon, por exemplo, aumentou seu valor de mercado em 2 trilhões de reais durante a pandemia. O último período intensificou o ciclo de destruição encampado pelas políticas neoliberais, garantindo a acumulação de riquezas nas mãos de pouquíssimas empresas.
Bolsonaro foi o pior líder do mundo a responder à pandemia e vemos agora a economia brasileira desmoronar enquanto outras se recuperam. O presidente impossibilitou o isolamento social que poderia ter salvo milhares de vidas incentivando a volta de todas as atividades não-essenciais, as aulas não voltaram apenas pela luta aguerrida das profissionais de educação, e agora corta o auxílio emergencial pela metade deixando o povo a mercê da fome. Nesse tempo, o ministro da economia Paulo Guedes promove uma reforma administrativa que precariza o acesso aos serviços públicos de saúde, educação e assistência social, retirando direito dos trabalhadores com um discurso de combate aos privilégios enquanto preserva os militares e os cargos de elite do Judiciários e Legislativo. Para colocar a cereja no bolo, o incêndio de proporções gigantescas no Pantanal é tratado com total desprezo pelo ministro do meio ambiente, Ricardo Salles.
O projeto de Bolsonaro e Guedes agora conta com o apoio do “centrão”, que atura Bolsonaro para garantir seu projeto neoliberal e a manutenção dos privilégios da casta política. Esse projeto no entanto só será garantido se uma ideologia misógina cale as mulheres que, junto à juventude, lideraram as mobilizações do último período e consiga as manter como responsáveis pela reprodução da classe trabalhadora. Aqui entra em jogo a ministra mais popular do governo, Damares Alves, que nas últimas semanas revoltou uma parcela da população por seu apoio a grupos fundamentalistas que aterrorizaram uma menina de 10 anos no Espírito Santo. A criança buscava seu direito ao aborto legal após ter sido constantemente estuprada por seu tio. Como demonstra a entrevista de Rosana Pinheiro Machado com o antropólogo Lucas Bocarelli, as principais pautas da ministra são o homeschooling e a abstinência sexual. Ambos os projetos estão ligados ao papel da mulher como cuidadora do lar, comportada, que tem barrados seu acesso ao próprio corpo, sexualidade ou vontade. O homeschooling permite a precarização das escolas colocando o cuidado a encargo da mãe na individualização do lar. Já o discurso de abstinência sexual, que não encontra respaldo na realidade, é uma maneira de impedir a educação sexual que empoderaria os jovens a ter uma relação mais autônoma e saúdavel com sua sexualidade e poderia impedir a violência sexual contra crianças. É mais um vez através de um ideologia de divisão da classe trabalhadora que o capital consegue se incorporar na subjetividade do povo, que passa a ver como mais importante a criminalização do aborto do que seu direito a alimentação básica.
O caso da menina do Espírito Santo sensibilizou muitas pessoas, em especial mulheres, que se identificaram com a proteção de uma criança, mas que ainda são muito distantes da legalização do aborto em sua totalidade. O movimento feminista que foi às ruas pela garantia do aborto legal teve como resposta quase imediata a portaria 2282/2020 que busca na prática inviabilizar o aborto nos casos legais – estupro, perigo de vida à mãe ou ao feto e feto anencéfalo. O movimento feminista precisa revogar essa medida, e encontrar novas maneiras de dialogar com o povo sobre direitos reprodutivos, colocando a legalização do aborto lado a lado da educação sexual, anticonceptivos, voluntariedade da laqueadura e contra a laqueadura forçada.
É importante notar também, que o conservadorismo de Damares não anda sozinho, mas é reforçado por outros aliados importantes de Bolsonaro, como a família do bispo Edir Macedo. O bilionário em questão é dono da Igreja Universal e da Rede Record, mecanismos essenciais de entrada dos elementos ideológicos descritos acima. O sobrinho de Edir Macedo, Marcelo Crivella, é além disso prefeito da cidade do Rio de Janeiro – principal base social de Bolsonaro – onde sofreu recentemente duas tentativas de impeachment por seu envolvimento em esquemas de corrupção.
Entramos então em um período eleitoral bastante instável, no qual uma parcela do povo parece ter se voltado contra Bolsonaro, como muitos dos entregadores que lideraram o Breque Dos Apps, mas outras parcelas permanecem consolidadas. As feministas, que seguem sendo a maior voz na construção de uma alternativa política no Brasil e no mundo tem como tarefa construir campanhas movimento durante as eleições que sejam capazes de dialogar com os anseios imediatos da população, o desgaste com a política institucional e principalmente conseguir construir a partir das mobilizações outro projeto de país. Dessa forma, não podemos abrir mão dos debates sobre violência contra mulher ou direitos reprodutivos e liberdade sexual, mas sim saber aliar esses à políticas de garantia de direitos. Precisamos estar lado a lado das lutas por serviços públicos, criação de empregos, regulamentação do trabalho, por outra relação com a natureza, contra a violência de Estado, pela revogação do teto dos gastos e pela taxação das grandes fortunas na construção de campanhas-movimento.
#ForaBolsonaro
#ForaDamares
#ForaSalles
#TaxaçãoDasGrandesFortunas
#FimDoTetoDosGastos
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