Mari, você não está sozinha! Juntas contra a cultura do estupro
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Mari, você não está sozinha! Juntas contra a cultura do estupro

Confira o manifesto do coletivo Juntas! por justiça para Mari Ferrer

Tatiane Novais 4 nov 2020, 19:44

O coletivo Juntas! declara toda sua solidariedade e apoio à vítima, Mariana Ferrer, pelas agressões sofridas durante a audiência realizada em Ação Penal, cujo réu, André Camargo de Aranha, empresário, foi acusado de estupro de vulnerável.

Em contrapartida, destaca o repúdio e a indignação pela ação das instituições jurídicas públicas presentes na audiência – Ministério Público e Tribunal de Justiça de Santa Catarina – bem como, contra a atuação do advogado do réu, Cláudio Gastão da Rosa Filho, exposta em vídeo divulgado pela reportagem jornalística publicada no portal The Intercept Brasil nesta data, dia 03/11/2020.

No vídeo supracitado, é possível observar claramente a humilhação e tortura psicológica sofridas pela vítima, que foi agredida verbalmente com alegações que ferem diretamente sua dignidade e induzem ao entendimento de que ela mesma teria contribuído para o crime de estupro a que foi acometida. O advogado de defesa do réu insistiu na exibição de fotos fora do contexto do caso, constrangendo a vítima em uma audiência composta por quatro homens, sendo ela a única mulher, vítima de estupro, em estado de total vulnerabilidade e fragilidade emocional. Não satisfeito, ainda fez questão de humilhá-la com argumentos ofensivos, agressivos e intimidadores: “Tu vive disso? Esse é teu criadouro, né, Mariana, a verdade é essa, né? É teu ganha pão a desgraça dos outros? Manipular essa história de virgem?”. Sem nenhum respeito ao sofrimento da vítima, o advogado descreveu suas fotos como “GINECOLÓGICAS”, declarando que jamais teria uma filha do “nível” de Mariana e que suas lágrimas eram falsas, induzindo ao entendimento de que a vítima estaria mentindo e fingindo suas reações emocionais. O Juiz de Direito da 3ª Vara Criminal de Florianópolis não se manifestou em nenhum momento, não interrompeu o advogado em suas acusações infundadas e injuriosas, permitindo, assim, que esta sessão de tortura continuasse até o visível desespero da vítima, que chega a implorar por RESPEITO durante a audiência.

Como se nota claramente nas cenas do vídeo, em diversos momentos o advogado do réu intimidou e constrangeu profundamente a vítima. Utilizando um tom agressivo em sua fala, em muitos momentos, transmitiu informações exageradas e caluniosas, dando a entender que a vítima era a própria culpada por ter sido estuprada e agiu como se estivesse sendo ela a julgada naquela audiência. Nesta situação, o advogado do réu fez uso de violência psicológica, se utilizando do temor infundido na vítima como instrumento para tomar vantagem em negócio jurídico, para si ou para outrem.

O dolo ou coação diz respeito à ofensa aos princípios da lealdade e da boa-fé processual e motiva esse Manifesto, pois influenciou significativamente o juiz, afastando-o da verdade, já que muitos fatos apresentados são inverídicos, baseados em situações imaginárias e pressupostas, distantes da realidade e das provas apresentadas nos autos. O discurso do advogado é insistentemente pautado em desqualificar a vítima, como se o fato de ela ser modelo profissional e publicar fotos sensuais em rede social virtual justificasse ser vítima do crime de estupro.

Observa-se que o próprio Ministério Público de Santa Catarina se posiciona de forma omissa em relação aos fatos e provas processuais e, principalmente, por se manifestar contrário aos Princípios Institucionais do órgão. O Ministério Público, além de ser o dono da Ação Penal é fiscal da Lei, no entanto, durante a referida audiência não exerceu nenhuma das suas funções institucionais, essenciais à justiça.

Ora, o promotor de justiça, como membro do Ministério Público do Estado, tem papel fiscalizador da ordem jurídica, deve respeitar os princípios e valores do órgão que compõe, dentre eles, o dever de proteger os Direitos Fundamentais e combater suas possíveis violações. O profissional deve trabalhar à serviço da população, e em se tratando de ação que envolva violência sexual contra a mulher, deve, acima de tudo, garantir os direitos da vítima, protegendo-a e assegurando sua dignidade durante o processo de condenação do seu agressor.    

O parágrafo segundo do artigo 130-A da Constituição Federal estabelece que “compete ao Conselho Nacional do Ministério Público o controle da atuação administrativa e financeira do Ministério Público e do cumprimento dos deveres funcionais de seus membros”, cabendo-lhe zelar pela observância do art. 37 e apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Ministério Público da União e dos Estados.

A atuação funcional dos membros do Ministério Público deve ser exercida dentro dos limites constitucionais e infraconstitucionais, sendo plenamente possível que estes respondam disciplinarmente em caso de descumprimento de tais regras. Nesse contexto, cabe lembrar que o comportamento das autoridades é construído dentro de um contexto misógino e machista, com um discurso profundamente representativo do processo social de culpabilização da mulher vítima de violência e do fortalecimento da cultura do estupro.

De acordo com a Lei n.º 12.015/2009, o estupro cometido contra pessoa sem capacidade ou condições de consentir, com violência ficta, passou a configurar crime autônomo, previsto no art. 217-A, sob a definição de “estupro de vulnerável”, crime do qual o réu André Aranha foi acusado. Entretanto, em manifestação, o Ministério Público utiliza a tese de condição “culposa”, em que inexistiria a intenção do réu de estuprar. A sentença apresenta uma fundamentação que nunca fora utilizada anteriormente no ordenamento jurídico brasileiro, gerando entendimentos equivocados e distorcidos, que podem abrir precedentes em teses de defesas desse tipo de crime. O crime de estupro já é de difícil comprovação, devido à situação em que ocorre (geralmente vítima e agressor estão sozinhos no momento do ato) e muitas vezes a única prova é a própria palavra da vítima. É extremamente doloroso para uma mulher vítima de violência denunciar o crime, expondo sua intimidade sexual publicamente, principalmente pelo medo do julgamento social e pelo constrangimento e constantes humilhações a que é sujeita nas instituições públicas.

O Código Penal Brasileiro foi escrito e promulgado em 1940, época em que predominavam discursos patriarcais, religiosos e hegemônicos, claramente observados no texto da Lei Penal, principalmente na descrição de crimes relativos a estupro ou a crimes contra a figura da mulher. Percebe-se que a “moral da sociedade” importava mais do que a dignidade da mulher em si. A mulher era colocada como propriedade, totalmente submissa ao homem, e poderia até ser castigada fisicamente pelo marido, com autorização legal, assim como o crime de estupro poderia ser anulado se o agressor fosse casado com a vítima.

Essa cultura de opressão à mulher foi construída histórica, jurídica e socialmente no Brasil, seja pela atuação do Estado nos anos 40 com sua política de natalidade e interesse nacional na capacidade reprodutiva da mulher, seja na Ditadura Militar dos anos 60, quando o controle de natalidade e o planejamento familiar foram apontados como forma de valorizar o crescimento econômico e evitar práticas reprováveis legal e moralmente, como o aborto voluntário, por exemplo.

Muitas mulheres vítimas de violência sexual no Brasil não faziam denúncias nos órgãos competentes devido, justamente, ao constrangimento a que eram expostas, à sua palavra sendo colocada sempre em dúvida, sua verdade questionada, independente de fatos, provas e circunstâncias.

A história da luta contra a violência à mulher foi construída com muito esforço e sofrimento durante décadas. A Delegacia de Defesa da Mulher foi criada somente em 1985, ou seja, soma-se apenas 35 anos que as mulheres conquistaram o direito de ter acolhimento em uma delegacia especializada. Mesmo diante de várias conquistas, ainda observamos um nítido descaso das autoridades e do Estado no combate aos crimes cometidos contra a mulher, como se estes crimes fossem de menor importância, desqualificados.

São muitos os casos como esse da jovem Mariana Ferrer, em que o estuprador, mesmo com todas as provas, sequer é condenado. Tornar público o andamento destes casos, escancara a ineficácia das políticas públicas existentes e a institucionalização do poder patriarcal nos órgãos responsáveis. Políticas que, ao invés de permitirem torturar e violentar a vítima, como acontece durante o vídeo da audiência do caso apontado, deveriam acolhê-la e garantir sua proteção mental e física. Mariana Ferrer foi culpabilizada e desacreditada pela sua maneira de se apresentar socialmente, pelo jeito de se vestir, de falar, de andar, de demonstrar emoções, POR SER MULHER, APENAS!

Em um país em que a cada 8 horas uma mulher ou menina é estuprada – 70,5% dos casos registrados são classificados como estupro de vulnerável – não podemos deixar que a vida das mulheres, em sua grande maioria dentro de um recorte de classe social, seja destruída. Quando não morrem em decorrência da violência, sofrem graves consequências, principalmente as mulheres pobres, não brancas ou pertencentes a grupos étnico-raciais historicamente excluídos e oprimidos.

Por todo o exposto neste Manifesto, o coletivo Juntas! clama por JUSTIÇA À MARIANA FERRER, pela vida de todas as mulheres, pela liberdade de seus corpos, pela garantia dos direitos, da saúde e do acolhimento das mulheres vítimas de violência, destacando que todas devem receber tratamento adequado, justo e digno. O coletivo se manifesta, também, pela responsabilização dos profissionais citados, face aos seus comportamentos institucionais inadequados – advogado do réu, promotor de justiça e juiz de direito da 3º vara criminal de Florianópolis – fato que consiste em grave violação ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Por fim, o coletivo Juntas frisa que a sentença dada neste caso viola não só os direitos e a dignidade particular da vítima, Mariana Ferrer, mas também de todas as mulheres brasileiras, representando uma profunda ofensa ao movimento feminista e um retrocesso à essa histórica e tão importante luta por justiça, igualdade e liberdade.


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