Reflexões sobre a organização do movimento feminista no Brasil
Como o movimento feminista pode disputar o sentido da vida das mulheres brasileiras?
O movimento feminista vive desde 2011 uma quarta onda internacional, com atos despontando todos os anos em diversos lugares do mundo. Ainda que a pandemia e a dificuldade de fazer frente ao governo Bolsonaro às vezes nos façam esquecer, no Brasil não foi diferente. Vivemos as marchas das vadias, a primavera feminista, organizamos 8Ms enormes e o Ele Não foi uma marca fundamental do enfrentamento à extrema direita. É inegável, no entanto, que o feminismo se encontra em diferentes etapas de organização em países distintos. Isso se faz muito evidente quando comparamos o movimento do Brasil ao da Argentina, ou Chile.
Por aqui, duas de suas características centrais tem sido sua espontaneidade e reatividade. Algum caso de violência tomava mais espaço nas redes e milhares de mulheres se organizavam da noite para o dia para estar nas ruas, como foi o caso do estupro coletivo no Rio de Janeiro. Na iminência de alguma retirada de direito, como foi com a tentativa de proibição da pílula do dia seguinte por Cunha, e mais milhares de mulheres se colocavam em frente aos palácios de poder para protestar. Essa característica certamente não é exclusiva do movimento feminista, levantes de massas são espontâneos, não temos controle sobre quando ocorrerão, mas devemos sempre incentivá-los e colocar nossas forças para que continuem e avancem em suas elaborações. A primavera árabe se deu da mesma forma, junho de 2013 e a maioria das grandes jornadas de luta dos últimos anos. Da mesma forma que nos outros levantes, as redes sociais cumpriam um papel importante na organização das ações. Grupos de whatsapp, facebook e eventos pipocavam e organizavam rapidamente intervenções com hashtags próprias. Apesar do uso do passado para descrever esses momentos, não acredito que a primavera feminista tenha chegado ao seu fim, afinal muitas das condições que abriram essa janela continuam presentes. No entanto, talvez nos encontremos em um impasse de como enraizar e fincar a primavera feminista em solo brasileiro de maneira mais permanente, e de como a disputar para um programa de classe.
O levante feminista do último período surgiu de contradições próprias do capitalismo neoliberal que vivemos. Se por um lado, afirma a liberdade individual dos sujeitos consumidores, por outro é coercitivo e violento na manutenção das mulheres como objetos sexuais, e retira os direitos que assegurariam sua liberdade. O direito de ir e vir, por exemplo, tão essencial para a locomoção de mulheres para seus locais de trabalho, é negado com a lotação dos transportes públicos, que nos colocam em situação de vulnerabilidade para todo tipo de assédio. Além disso, somos o tempo todo afirmadas como reprodutoras essenciais da classe trabalhadora, nenhuma figura feminina é tão central no mundo quanto Maria, a mãe por excelência. Mas nessa afirmação os agente da burguesia fazem de tudo para precarizar os serviços de reprodução da vida, e mesmo assassinar os filhos das mulheres negras, nos relegando a reprodução no lar, onde mais uma vez nossos direitos como indivíduos livres são negados pela violência da instituição familiar – nos moldes burgueses. No pulso dessas contradições, muitas mulheres encontraram no feminismo uma resposta de narrativa para suas vidas, que incluía a luta por um mundo no qual elas pudessem de fato ser livres. O feminismo invadiu casas, escolas e locais de trabalho em grandes centros urbanos, periferias e interiores, gerando debates acalorados, discórdias e sínteses importantes. O feminismo foi um discurso vitorioso.
A partir dessa vitória, no entanto, se colocam dois problemas. O primeiro é que o feminismo não precisa incluir uma defesa do anticapitalismo e da organização da classe trabalhadora, na verdade, o liberalismo enquanto discurso tem bastante força na disputa de um movimento tão amplo e disperso, pautado na liberdade, igualdade e sororidade. O segundo problema, é que no Brasil, o feminismo não conseguiu construir espaços de organização das mulheres que possam disputar na sociedade civil com aqueles da burguesia, como a Rede Globo, as mídias sociais, etc.
Não vou buscar nesse texto, me aprofundar no primeiro problema, mas sim no segundo. Como sabemos, a burguesia constrói na sociedade muitos espaços pelos quais busca dar sentido à vida das pessoas através da prática cotidiana. Talvez o exemplo mais óbvio hoje sejam as igrejas evangélicas, espaços nos quais pessoas desamparadas encontram solidariedade, auto-estima e muitas vezes benefícios mais práticos, como indicações para seu negócio. Mas as Igrejas estão longe de ser exclusivas, as próprias escolas são em grande medida espaços nos quais além de sermos incubidos de toda ideologia discursiva dominante, encontramos sentido para nosso futuro. A perspectiva de entrar na universidade, ter uma vida melhor, ou mesmo se formar e ter um diploma de ensino médio que te favoreça na disputa do mercado de trabalho. No Rio de Janeiro, a FIRJAN, FIESP carioca, dá diversos cursos de capacitação com apoio psicológico e outros benefícios para jovens periféricos. Não poderia esquecer das redes de televisão, que são assistidas cotidianamente pela maior parte dos brasileiros e das redes sociais, nas quais estamos tão imersos que esquecemos que são espaços completamente controlados por duas ou três empresas internacionais. Essas instituições não são todas iguais, nem servem aos mesmo propósitos, mas elas vão além de um discurso, elas dão sentido prático à vida dos brasileiros.
Alguns desses espaços estão mais abertos para uma disputa de hegemonia da classe trabalhadora do que outros. Certamente as escolas são muito mais disputáveis do que os cursos técnicos da FIRJAN, ou as novelas da Rede Globo/Universal. Alguns desses espaços abriram as portas para organizações centrais, como o movimento estudantil universitário, que dá um sentido cotidiano para a militância de centenas de quadros políticos pelo Brasil em suas disputas de DCE e calendários de luta. A classe trabalhadora também constrói espaços próprios, como os pré-vestibulares populares territorializados, as associações de moradores, os sindicatos e mesmo as ocupações de terra e moradia. E vice-versa, esses também podem ser disputados pela burguesia, como qualquer sindicalista bem sabe. Ainda que, novamente, alguns o sejam mais do que outros.
Voltando ao feminismo, me pergunto, quais são os espaços nos quais o movimento feminista fará essa disputa de hegemonia? É claro que o feminismo deve estar presente em todos os espaços citados acima, enquanto discurso emancipatório. No entanto, distinguo aqui o feminismo enquanto algo no que acreditamos e como ferramenta de fortalecimento das mulheres em todas as realidades citadas acima, e o movimento feminista, que precisa construir suas própria formas de auto-organização da classe. É bom notar que não pretendo com isso separar os dois, mas sim refletir sobre a possibilidade de novas dinâmicas e do fortalecimento de uma disputa de hegemonia para a classe trabalhadora.
Um bom exemplo para essa discussão é a campanha pela legalização do aborto organizada pela nossas hermanas argentinas. Todo ano, ocorre um encontro nacional de mulheres na Argentina onde milhares se encontram para debater diversos temas que impactam as vidas das mulheres, tirando comissões permanentes, calendários de lutas e campanhas. Além disso, as cidades argentinas têm assembléias feministas constantes, com coordenadoras, que organizam as campanhas nas cidades e comitês regionais responsáveis por construir o debate nos interiores. Isso significa que o feminismo dá sentido de vida a centenas de mulheres que se empenham cotidianamente em disputar outra organização social. No Chile, a situação é similar, mas em outros países o movimento feminista se organizou de outras formas. Em alguns momentos históricos no Brasil, também houveram congressos nacionais das mulheres por direitos, em outros o movimento feminista se organizou através de folhetins.
Cabe então refletirmos, como construiremos hoje dinâmicas cotidianas que deem sentido para a vida das mulheres brasileiras? As mulheres representam mais da metade da muito diversa população brasileira: o que nos une e possibilita que estejamos à frente de novos processos de auto-organização da classe? Iremos nos organizar a partir de demandas concretas, garantindo o acesso a direitos negados, como o direito ao próprio corpo? Formaremos redes para garantir o direito ao aborto para mulheres em situação de desespero? Organizaremos cartilhas sobre como fazer um aborto seguro (no Uruguai a legalização do aborto se deu pela via da educação sexual)? Organizaremos creches comunitárias quando o Estado nega às mães a educação pública? As mulheres negras formarão grupos de autodefesa comunitária quando o Estado ameaça a vida de seus filhos? Construiremos assembleias feministas em bairros e cidades que possam fortalecer as mulheres enquanto lideranças das mais diversas lutas, nos unindo em causas comuns? Algumas dessas possibilidades parecem mais palpáveis do que outras, algumas parecem bastante longínquas, mas nenhuma impossível. Certamente, poderíamos pensar em muitas mais. Alguns ensaios já têm sido feitos nesse sentido, como as assembleias de construção do 8M e campanhas nacionais contra a violência machista, entre outras.
Esse texto não tem como objetivo afirmar qual dessas formas de organização devemos adotar de imediato, mas impelir que esse debate seja feito e que possamos avançar na construção de um movimento dinâmico que dê sentido à vida das mulheres do Brasil em seu dia-a-dia.