O Irã está vivendo uma Revolução Feminista?
Foto: Herzi Pinki

O Irã está vivendo uma Revolução Feminista?

Muitas das feministas mais vocais do Irã estão definhando na prisão. Feministas de todo mundo deveriam pressionar por sua liberdade.

Frieda Afary 14 dez 2022, 18:01

Os protestos de massas liderados pelas mulheres no Irã duram agora quase três meses. Desde 16 de setembro – quando os protestos iniciaram no Curdistão e em Tehran em resposta ao assassinato de Zhina Mahsa Amini, pela polícia do Estado, por conta do uso impróprio do hijab – a repressão estatal aumentou severamente. De acordo com o Centro de Direitos Humanos no Irã, mais de 18.000 manifestantes já foram presos, mais de 450 foram assassinados, e mais de 50 destes eram menores de idade. Pelo menos 16 manifestantes foram acusados como “inimigos de Deus”, cuja punição é a morte. De acordo com o próprio governo iraniano, cinco foram sentenciados de morte. Muitos aguardam julgamento. Alguns manifestantes foram estuprados em custódia da polícia, prática comum à República Islâmica desde seu princípio.

A idade média dos manifestantes é de 15 anos, e mulheres e meninas continuam a estar à frente. Centenas de estudantes universitários que participaram dos protestos estão tendo seu direito de continuar a estudar negado enquanto esperam julgamento por “ameaçar a segurança nacional”.

As manifestações e algumas greves se espalharam por muitas cidades e áreas rurais pelo Irã e incluem todas as minorias étnicas e nacionais. A repressão também se intensificou com o uso de balas reais contra os manifestantes, especialmente nas províncias do Curdistão, Sistão e Baluchistão, através de atiradores que miram nos olhos dos manifestantes para cegá-los.

Muitas manchetes recentes ressaltaram o anúncio feito em uma conferência de imprensa pelo procurador-geral do Irã, Mohammed Javad Montazeri, que disse que a polícia moral do Irã será terminada. No entanto, Ansieh Khaz’ali –  o vice presidente de assuntos da mulher e da família, indicado pelo presidente Ebrahim Raisi – imediatamente clarificou o assunto em conversa na Universidade de Sharif: “eu não disse que nós não temos mais uma polícia da moralidade. Eu disse que não teremos mais algo chamado polícia da moralidade. Nós ainda temos uma força de polícia responsável pela segurança moral”. O chefe do “Escritório de Promoção de Virtude e Prevenção do Vício” também enfatizou que o governo irá focar em tecnologias para impor as regras sobre o hijab.

O fato de mulheres e meninas estarem à frente dos protestos, queimando seus lenços compulsórios ou hijabs e cantando o slogan “Mulher, Vida, Liberdade” fez com que muitas organizações feministas iranianas e internacionais se referissem aos eventos no Irã como uma “Revolução Feminista”.

Outros enfatizaram que o Irã tem uma longa história de lutas feministas, que podem ser traçadas à revelação pública da escritora e líder do babismo Tahirih Qurrat al-´Ayn em 1848 e a participação das mulheres na Revolução Constitucional (1906-1911) contra o colonialismo britânico e russo, a monarquia e a intervenção do clero.

Aqui, gostaria de delimitar alguns elementos do atual levante que pode ser claramente caracterizados como feminista. Ao mesmo tempo, gostaria de reforçar as vozes feministas iranianas dentro do Irã, acentuando a necessidade de aprofundarmos o conteúdo e a leitura dessa luta para chamá-la de uma “Revolução Feminista”.

Dimensões feministas do levante

Uma das mais significativas tentativas de transformar as relações de gênero durante o atual levante foram os esforços de estudantes universitários para dessegregar refeitórios e salas de aula. Depois de quatro décadas de separação forçada de mulheres e homens nas universidades, os estudantes estão tomando os refeitórios e se recusando a sentar-se separadamente. Essas ocupações são em sua maioria dirigidas por mulheres.

Essa campanha de desobediência civil espelha os esforços dos ativistas estadunidenses pelos direitos civis, no final da década de 1950 e 1960, para desagregar espaços públicos, e produziu uma retaliação do Estado. Assim como aqueles que marcharam pela liberdade em 1961 no Mississipi, enfrentaram espancamentos brutais, prisões e assassinatos por seus esforços, a juventude iraniana está enfrentando ataques brutais de um Estado autoritário e fundamentalista religioso, suas forças de segurança e suas balas por seus esforços pela dessegregação de gênero.

Outra expressão significante da consciência feminista tem sido o retirar público do véu por Gohar Eshgi, uma trabalhadora iraniana mais velha do setor tradicional da população que segue estritamente as regras do hijab. Seu filho, Sattar Beheshti, um trabalhador blogueiro, foi assassinado na prisão dez anos atrás. Eshghi segurando uma foto de seu filho, retirou seu hijab pela primeira vez em frente a uma câmera, disse apoiar a juventude e sua demanda pela revolução e apelou a outros para se unirem a eles, pois “não temos nada a perder”. Ela proclamou que se recusava a seguir qualquer religião se isso significasse matar pessoas. Esse vídeo teve milhares de visualizações e mobilizou muito apoio nas redes sociais porque muitos iranianos ficaram mesmerizados com sua coragem, sua forte defesa dos direitos das mulheres e sua oposição a qualquer perspectiva religiosa forçada.

Talvez o desafio feminista mais significativo tenha vindo de um grupo de mulheres do Baluquistão conhecidas como Dasgoharan (sororidade), que emitiu uma série de declarações coletivas durante os últimos dois meses articulando as revindicações das mulheres do Baluquistão, o segmento mais oprimido e marginalizado da população iraniana.

A primeira declaração das Dasgoharan confrontava o estupro de uma menina de 15 anos de idade por um coronel durante um interrogatório, e denunciava o recente massacre organizados de mais de 100 balúchis por protestarem contra esse estupro. As Dasgoharan afirmam que, no passado, uma mulher balúchi que era estuprada seria assassinada por sua família pela vergonha que traria a eles. No entanto, depois dessa onda nacional de manifestações desencadeada pelo assassinato de Amini, as mulheres e a sociedade do Baluquistão se recusam a serem silenciados sobre os estupros.

Em uma declaração subsequente, o grupo Desgoharan desafiou o líder religioso sunita dos Balúchis, Molavi Abdul Hamid, que recentemente reivindicou um referendo popular para determinar a forma de governo do Irã. Elas expuseram sua história de colaboração com o regime iraniano e com o Talibã, assim como suas práticas sexistas, incluindo permitir que famílias negassem educação às meninas.

As Dasgoharan afirmaram que elas são “contra todas as formas de dominação e repressão” e que querem expressar as “vozes independentes” das mulheres do Baluquistão. Elas se recusam a separar o patriarcado de seu contexto social, econômico e histórico e o limitar a um fenômeno cultural. Elas vêem no levante iraniano uma oportunidade de expressar todas essas reivindicações, inclusive os direitos das pessoas da comunidade LGBTQ.

É nesse sentido que outras feministas iranianas têm demandado um aprofundamento do conteúdo do atual levante. Manifestantes continuam a expressar slogans que se opõem a formas de governo monárquicas e clericais. Muitas jovens desafiam o direcionamento mais estrito nacionalista, expresso em slogans como “Homem, País, Reconstrução” (que em persa rima com “Mulher, Vida, Liberdade”).

Farzaneh Raji, uma escritora socialista iraniana, tradutora e antiga prisioneira política, atualmente escreveu que “não podemos utilizar slogans patriarcais para lutar contra o patriarcado”. Ela reivindicou especificamente slogans que expressem “ideais, demandas e objetivos do movimento”.

Uma declaração de um grupo de feministas iranianas reivindicando protestos massivos no 40º dia do aniversário da morte de Amini, também ressalta que elas se opõem a qualquer tipo de ditadura – seja pelo clérigo ou pela monarquia – que lutam simultaneamente e “sem priorizar a emancipação das mulheres do patriarcado, a emancipação dos trabalhadores, professores, enfermeiros da exploração de classe, a emancipação dos estudantes da ditadura educacional, a emancipação das nacionalidades oprimidas desse sistema centralizado ou pela autodeterminação das mulheres, por igualdade, justiça, pelas mulheres, vida e liberdade”.

Liberdade às presas feministas

Enquanto os protestos seguem nas ruas, algumas das mais vocais, articuladas, experientes e ativas feministas no Irã estão atualmente definhando na prisão ou impedidas de participar de qualquer atividade. Essas incluem Narges Mohammadi, ativista contra a sentença de morte e o confinamento em solitária; Nasrin Sotoudeh, advogada de direitos humanos; e outras escritoras e ativistas, como Atena Daemi, Glorokh Iraee, Zeynab Jalalian e Sepideh Qolian, entre outras. Essas feministas também escreveram sobre as terríveis condições enfrentadas pelas mulheres presas em geral. Dentro das prisões, elas criaram novos laços de solidariedade com mulheres marginalizadas de minorias étnicas, nacionais e religiosas oprimidas, e expressaram a relação entre o encarceramento, a violência de Estado, a violência de gênero, a desigualdade social e o patriarcado.

Ainda que casos de algumas feministas iranianas, como Nasrin Sotoudeh e Narges Mohammedi, tenham ganhado atenção global, a demanda pela liberdade imediata dos prisioneiros políticos do Irã não se tornou uma campanha global. Feministas internacionais devem urgentemente publicar os nomes e biografias das feministas presas e demandar o fim do sistema de encarceramento em massa que existe no Irã.

É impossível haver uma revolução feminista enquanto essas mulheres estiverem presas e sofrendo com as imposições da vida prisional. Precisamos de seu conhecimento e experiência, assim como das redes que elas desenvolveram pelo país para aprofundar o conteúdo do atual levante.

A presença ativa dessas feministas na luta, e o aumento do debate sobre assuntos explicitamente feministas, como a oposição aos assassinatos por honra e estupro, o apoio ao aborto e aos direitos reprodutivos, o direito ao divórcio e à custódia das crianças, os direitos da comunidade LGBT, direitos trabalhistas e os direitos das minorias étnicas e nacionais podem ajudar a garantir que o movimento pelo fim da República Islâmica continue em um direção progressista e não seja desviado em uma direção de patriarcado nacionalista.

Texto originalmente publicado em: https://truthout.org/articles/is-iran-in-the-midst-of-a-feminist-revolution/




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