Como proteger nossas crianças do assédio digital?
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Como proteger nossas crianças do assédio digital?

Quais mecanismos de controle essas ferramentas digitais apresentam para barrar ações criminosas?

Jéssica Souza 14 abr 2023, 14:12

Durante o mês de março, a novela das 21h da Rede Globo passou a apresentar cenas bem aterrorizantes sobre um dos principais debates da década: como a internet apresenta riscos para nossas crianças e adolescentes.

No enredo global de autoria de Glória Perez, uma jovem interpretada por Danielle Olímpia começa a interagir com uma influencer de sucesso por meio das redes sociais. Aos poucos essa relação vai se tornando mais íntima e a novela passa a mostrar o outro lado da tela. A realidade é que a pessoa com quem a jovem interagia não era a influencer e sim, um homem mais velho com atitudes pedófilas que usa de artifícios digitais para mudar a imagem e a voz. [A tecnologia que possibilita que esse tipo de crime aconteça é conhecida como “deepfake” que permite a edição de imagens e recriação de rostos com uso de inteligência artificial.] Aos poucos, as cenas passaram a ser cada vez mais reais e chocantes! No início, o homem (que ainda está usando a imagem da influencer) pede para que a jovem mande fotos, depois que mostre partes do corpo para ele e, por fim, o homem passa a se apresentar para ela com a identidade real e a ameaçá-la de divulgar e expor as imagens que teve acesso.

A novela aproveitou a audiência no tema para apresentar o conceito desse tipo de crime, que recebe o nome de estupro virtual, por meio da personagem da atriz Giovanna Antonelli, a delegada que pegou o caso. Esse termo enquadra a variação do crime de estupro (Art. 213 Código Penal) que sofreu alterações em 2009, passando a ser definido como: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. Assim, o estupro não ocorre apenas com conjunção carnal, por meio de toques físicos, mas sim por “constrangimento a alguém mediante grave ameaça […] de modo a praticar outro ato libidinoso”. Englobando, dessa forma, os crimes que ocorrem à distância, no qual o criminoso e a vítima podem não estar no mesmo local. Assim, o crime que ocorre remotamente, por meio digital, e que por essa razão não permite o toque físico, mas violenta e ameaça a vida de crianças, jovens e mulheres da mesma forma, são considerados estupro virtual. 

Além da novela, outro acontecimento aumentou ainda mais o foco no debate. A BBC Brasil divulgou no dia 4 de abril a reportagem intitulada “Como promotor do RS conseguiu primeira condenação por estupro virtual no Brasil1. Fato que durante a elaboração desse texto, se mostrou equivocado, uma vez que encontramos nas nossas pesquisas condenações anteriores, como no ano de 20172, por exemplo.  

O fato é que realmente precisamos avançar seriamente nesse debate sobre a segurança das crianças e adolescentes na internet. 

A recomendação de especialistas é que os cuidadores de crianças e adolescentes estejam atentos ao uso dos recursos digitais, como forma de monitorar os contatos e o tipo de conteúdo que é acessado e compartilhado pelos mais jovens. Mas também é necessário que esse debate seja amplamente discutido na sociedade, para que todas e todos nós possamos entender como esse tipo de crime acontece, como reduzir riscos e como agir diante das ações criminosas, seja com nossos filhos, amigos e até com nós mesmos. 

Aproveitamos esse texto para compartilhar os mecanismos de emergência que devem ser acionados diante de qualquer situação dessa: 

  • Disque 100 – Número que atende denúncias de violação de direitos humanos. “Atende graves situações de violações que acabaram de ocorrer ou que ainda estão em curso, acionando os órgãos competentes e possibilitando o flagrante”3.
  • Disque 180 – Número que recebe, analisa e encaminha denúncias de violações contra a mulher. É por esse canal que é possível “registrar denúncias de violações contra mulheres, encaminhá-las aos órgãos competentes e realizar seu monitoramento, […] também dissemina informações sobre direitos da mulher, amparo legal e a rede de atendimento e acolhimento”4.
  • Delegacia Especializada em Crimes Cibernéticos (DERCC) – Veja lista5 da SaferNet Brasil, associação civil com foco na promoção e defesa dos Direitos Humanos na Internet no Brasil.
  • Delegacias da Mulher;
  • Delegacias virtuais – O link varia de acordo com cada Estado;

Independente do instrumento, é muito importante as denúncias sejam formalizadas! 

E que nos posicionemos cobrando urgência para que esses instrumentos sejam mais eficientes e amplamente oferecidos para a população em todas as regiões brasileiras. Porque sabemos que não são todos os municípios que têm acesso a todos esses tipos de instrumentos de denúncias. 

E depois do crime? E depois da denúncia?

Nós também trazemos para esse debate a necessidade de criarmos e fortalecermos as redes de apoio às vítimas. Essa é uma questão essencial para que as crianças e os jovens vítimas desse tipo de crime sejam acolhidos de forma humanizada, para oferecer o suporte necessário, seja de ordem psicológica, judicial, educacional, entre outras. As pessoas que passam por esse tipo de violência precisam passar por um processo acompanhado de profissionais para trabalharem os traumas do que aconteceu, para que possam viver suas vidas com qualidade. Para isso, é importante que fortaleçamos a criação e ampliação de projetos como a Casa da Mulher Brasileira, que é um eixo do Programa Mulher, Viver sem Violência sob coordenação do Ministério das Mulheres e que integra em um mesmo espaço diversos serviços de acolhimento e apoio a mulheres vítimas de violencia6

Mas, além disso tudo que foi discutido aqui, precisamos ampliar esse debate para os criadores dessas tecnologias e plataformas digitais. Qual a responsabilidade deles diante do uso criminoso de seus produtos? Quais mecanismos de controle essas ferramentas digitais apresentam para barrar ações criminosas? Quais os deveres das redes sociais para reduzir o risco associado? 

A regulamentação da internet é um tema que vem sendo bastante debatido a nível global. Aqui no Brasil, o governo Lula, por meio do Ministério da Justiça, tem trabalhado em propostas de instrumentos legais para exigir a regulação dos serviços digitais. Entretanto, essas propostas têm como foco principal a redução da disseminação de informações falsas e antidemocráticas. Esse tema foi discutido recentemente pela repórter Patrícia Campos Mello, em um episódio do podcast Café da Manhã6 da Folha de São Paulo. Segundo Patrícia, existe uma proposta de medida provisória nas mãos de Presidente Lula, que […] “estabelece que nos casos de violação das leis do Estado Democrático de Direito as plataformas devem derrubar (retirar do ar) o conteúdo sem necessidade de uma ordem judicial”, ou seja, as plataformas digitais devem monitorar esse tipo de conteúdo de forma responsável e barrar essas informações assim que possível. O fato de as plataformas poderem agir sem ordem judicial tem sido discutido por meio do termo “Dever de Cuidado”.

No Marco Civil da internet, como comentado pela própria Patrícia no episódio citado, existe um tipo de conteúdo em que já se aplica o “Dever de Cuidado”, são os casos de “Pornografia de vingança”. Esse crime já é discutido desde 2017 (Projeto de Lei nº18/2017) que recebe inclusive o nome de Lei Rose Leonel, jornalista que teve fotos íntimas divulgadas por um ex-namorado (ficando estabelecida posteriormente pela Lei nº 13.772/2019). Logo, diante de crimes no qual pessoas são filmadas, fotografadas e/ou expostas sem consentimento as plataformas digitais têm o compromisso de derrubar os conteúdos sem necessidade de ordem judicial de terceiros. E por que ainda vemos esses crimes acontecerem? Por que essa responsabilização das plataformas digitais não sai do papel e alcança os criminosos que usam suas redes sem medo de serem descobertos? Vamos precisar cobrar cada vez mais do governo atual a responsabilização dos envolvidos, de forma direta e indireta. Não podemos permitir que nossos jovens continuem ameaçados constantemente por criminosos “invisíveis”.

Por fim, não podemos encerrar esse texto sem apontar outros culpados e outras questões que precisam ser reconhecidas para também serem responsabilizadas. Dentro de uma lógica patriarcal, onde o machismo estrutural está presente ao nosso redor em diferentes esferas e escalas, o estado também é culpado quando omisso. A Cultura do estupro reforça a ideia de objetificação dos corpos femininos, inclusive dos corpos jovens. Por meio da mídia, do marketing e do mercado são propagados padrões estéticos, físicos e estereotipados que alimentam a pedofilia, misoginia e as múltiplas violências contra as mulheres e jovens. São comportamentos e padrões “sutis ou explícitos que silenciam ou relativizam a violência sexual contra a mulher”8 e que precisam ser revistos para frear essa retroalimentação de um sistema violento, misógino e pedófilo. 

Enquanto Coletivo Juntas, seguiremos cobrando dos governantes ações efetivas de combate a todas as violências. E seguiremos marchando em frente, até que todas sejamos livres e seguras! 

1.    Como promotor do RS conseguiu primeira condenação por estupro virtual no Brasil. BBC Brasil. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cyxpw613pd4o

2.    https://posocco.jusbrasil.com.br/noticias/497174996/o-que-e-estupro-virtual

3.    https://www.gov.br/pt-br/servicos/denunciar-violacao-de-direitos-humanos

4.    https://www.gov.br/mdh/pt-br/ligue180

5.    https://new.safernet.org.br/content/delegacias-cibercrimes

6. https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/politicas-para-mulheres/arquivo/assuntos/violencia/cmb

7.    Episódio do podcast Café da Manhã da Folha de São Paulo intitulado O combate ao golpisto pela regulação das redes, 27 de fevereiro de 2023.

8.    https://www.politize.com.br/cultura-do-estupro-como-assim/


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