Mulheres negras, lutas, história e reivindicação
Giovanni Marrozzini

Mulheres negras, lutas, história e reivindicação

Reflexões sobre a organização das mulheres negras em luta no Brasil.

Mia Rodrigues 24 maio 2023, 11:31

A história mais recorrente no meio dos ativistas sociais é a de que a luta das mulheres negras teve início com a invasão dos colonizadores e a escravidão que perdurou por muito tempo neste país. O povo negro não aceitou calado a escravização e desde o primeiro momento em que corpos negros foram sequestrados da África, houve luta para vencer o processo de aniquilação, tarefa que persiste até hoje. A mulher negra vive uma anulação social e por muito tempo foi preciso questionar: “E eu não sou uma mulher?” Essa pergunta, feita por Sojourner Truth em 1851 durante a Women’s Rights Convention em Akron, Ohio, nos Estados Unidos, foi um momento de intervenção em um debate sobre os direitos das mulheres. Nessa intervenção, Truth deixou claro que a realidade da mulher negra era radicalmente diferente do imaginário do que significava ser mulher e como ela deveria ser tratada. Nas palavras de Truth:

“Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir em carruagens e devem ser carregadas para atravessar valas, e que merecem o melhor lugar onde quer que estejam. Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram um lugar melhor! E não sou uma mulher? Olhem para mim! Olhem para meus braços! Eu arava, plantava e colhia nos celeiros, e nenhum homem podia estar à minha frente. E não sou uma mulher? Eu poderia trabalhar tanto e comer tanto quanto qualquer homem, desde que tivesse oportunidade para isso, e suportar o açoite também! E não sou uma mulher? Eu pari treze filhos e vi a maioria deles ser vendida como escravos, e quando gritei de dor como mãe, ninguém além de Jesus me ouviu! E não sou uma mulher?”

Em outras palavras, ela não é considerada mulher. Infelizmente, mesmo com o passar do tempo, esse processo colonizador ainda está enraizado no imaginário social das sociedades multirraciais. Mulheres racializadas muitas vezes nem sequer têm seus problemas mencionados. O conceito universal de mulher não faz parte da realidade delas. A vivência dessas mulheres em seu cotidiano é uma reivindicação de ser um sujeito histórico. No Brasil, o processo colonizador, que resultou em miscigenação, frequentemente reivindicada por setores que negam a existência do racismo, teve como base o estupro de mulheres indígenas e negras. No pós-abolição, as mulheres negras, segundo Abdias Nascimento, “[…] até hoje sofrem com a solidão afetiva e também por sua condição de pobreza, ausência de status social e total desamparo, continuando a ser vítimas fáceis, vulneráveis a qualquer agressão sexual.”

O feminismo negro teve início nas décadas de 1960 e 1980, juntamente com as reivindicações por direitos civis nos Estados Unidos. Nesse período, foi fundada a Black Feminist Foundation em 1973, porque mulheres negras passaram a escrever sobre o tema. Mulheres como Angela Davis, Bell Hooks, Patricia Hill Collins e Audre Lorde surgiram na cena com escritos que se tornaram uma literatura feminista negra. A partir dessa reivindicação, que mais tarde seria chamada de interseccionalidade, as mulheres de cor passaram a reivindicar que não houvesse primazia de opressão, reconhecendo que o debate de gênero, raça e classe estava interligado.

No Brasil, segundo a socióloga Nubia Moreira, o feminismo negro ganhou força a partir da década de 1980. Segundo ela, a relação das mulheres negras com o movimento feminista se estabeleceu a partir do III Encontro Feminista Latino-Americano, realizado em Bertioga em 1985, de onde emergiu a organização atual de mulheres negras com expressão coletiva e o intuito de adquirir visibilidade política no campo feminista. A partir desse momento, surgiram os primeiros coletivos de mulheres negras contemporâneas, e ocorreram encontros estaduais e nacionais de mulheres negras.

A partir disso, o movimento de mulheres negras começou a se organizar para reivindicar espaço dentro do movimento feminista. O encontro de Bertioga foi marcado por muita polêmica, pois a divisão sexual do trabalho era articulada sem considerar a dimensão racial. Esse encontro foi caracterizado por narrativas discursivas e reivindicações de um vocabulário que entendesse que somos múltiplas mulheres, feminismo negros.

Como indica, Mariana Jafet, o movimento de mulheres negras, têm uma filiação de memória que relaciona com a escravidão, mas ultrapassa esse sentido, na medida que reivindica uma identidade feminina que não é sobalternida a cultura “eurocrsitã”, e constui uma identidade positiva negra. Isto, fica bem esclarecida na canção que mulheres negras fizeram, a fim de mostrar a história de mulheres negras. Dito isto, partiremos do movimento negras e como ele se constituiu a partir da década de 1980 e desenvolvemos uma reflexão sobre porque feminismo negro. 

Mulheres negras em movimento

O movimento de mulheres negras no Brasil foi impulsionado nos anos 1980, quando surgiram diversos coletivos autônomos e institucionais em vários estados brasileiros. Segundo Lélia, foi no interior do movimento negro que as mulheres negras puderam discutir o desenvolvimento de uma consciência política em relação ao racismo, suas práticas e articulações com a exploração de classe. No entanto, além da discriminação racial, elas enfrentavam o machismo tanto dos homens brancos quanto dos homens negros, o que era tema de discussões entre elas antes mesmo da formação do que posteriormente ficou conhecido como organizações de mulheres negras.

Lélia Gonzalez afirma que, devido ao universalismo abstrato branco, as “mulheres” reproduziam nas suas práticas políticas a invisibilidade do negro. Entre os exemplos, o movimento de mulheres no Brasil não havia percebido que a modernização conservadora pós-1964 imposta pelos detentores de poder tinha como grande excluída “a mulher negra”. Assim, não implicava transformações na inserção da força de trabalho feminina uniformemente. Para ela, esse silenciamento era um efeito de “silêncio ruidoso”, pois as contradições raciais na América Latina se fundamentam sobre o mito da democracia racial, dissimulando a dominação da ideologia do branqueamento e dificultando a afirmação positiva de uma identidade negra.

Dessa forma, a experiência de discriminação racial diferencia o “feminismo negro” do “feminismo ocidental”, por construir “a solidariedade fundada numa experiência histórica comum”. Sueli Carneiro afirma que o movimento de mulheres negras é marcado pela necessidade de demarcar uma identidade política em relação aos movimentos sociais feminista e negro, a qual, em última instância, determina sua existência e ambiguidades. As mulheres negras tinham uma aproximação e negação ao feminismo, diferenciando-o do “ocidental” e do “negro”, denunciando sua negação de existência dentro da história brasileira.

Segundo a historiadora Joana Pedro, as datas do ressurgimento do feminismo no Brasil estão na década de 1970.  A origem do termo “movimento de mulheres negras” é resultado de disputas de poderes políticos , com conflitos entre os coletivos de mulheres negras e outros sujeitos político-sociais. Jurema Werneck, em seu artigo intitulado “Nossos passos vêm de longe! Movimentos de mulheres negras e estratégias políticas contra o sexismo e o racismo”, coloca a primeira pessoa no plural, dando a entender que o movimento de mulheres não possui unicidade. “Mulheres negras” não são únicas, e consequentemente seus movimentos e estratégias são múltiplas.

Werneck dá exemplos de formas políticas e organizativas e de modelos de força feminina que são anteriores à invasão escravista e colonial, como as ialodês, divindades iorubanas e bantas, sociedades secretas femininas, que afirmam e reafirmam a política como um atributo feminino antes do encontro com o Ocidente. Mariana Jafet afirma que a construção teórica intelectual do feminismo negro é uma história de contradição. Segundo Mariana Jafet,  da mesma forma que se constrói a narrativa de origem do movimento de mulheres negras como emergente na tensão entre movimento feminista e movimento negro, desdobrando assim um novo sujeito político – “as mulheres negras” -, também a historicidade das “mulheres negras” como um coletivo antecede e extrapola o acontecimento da aparição organizada do que se autodenominou “movimento de mulheres negras”.

Assim, tendo duas narrativas, “movimento de mulheres negras” é acompanhada por essa outra narrativa de origem, que é a experiência histórica comum da escravidão e da resistência a ela, assim como a ação política das mulheres africanas anterior ao colonialismo e ao escravismo (CESTARI, 2014). A reivindicação antecede a luta em relação à historicidade, é  uma memória que circula de geração em geração de mulheres negras de forma regular nos discursos dos movimentos sociais. Isso faz parte da luta pela visibilização das mulheres negras na história e é compartilhado com os movimentos negros de forma mais ampla, destacando a participação de mulheres negras.

Organização política a partir do Rio de Janeiro:

Gonzalez fala que o movimento negro desempenhou um papel muito relevante na luta antirracista deste país, na medida em que sensibiliza setores, inclusive não negros, para a mobilização das lutas nas diferentes áreas da comunidade afro-brasileira e para a discussão do racismo e suas práticas. O sudeste é o centro onde essa luta cresceu, pois apresentava contradições latentes sobre o chamado milagre econômico brasileiro. Durante a ditadura, o movimento negro unificado já nos seus primeiros dois anos de existência (1978-1980) já havia se estendido para o Nordeste e Sul do país. Mulheres negras participaram desde o primeiro momento como lideranças dessa organização, bem como do movimento FFERJ (favelas) e da FAMERJ (bairros).

O movimento de mulheres negras, no interior do movimento negro, no Rio de Janeiro, por exemplo, desempenhou um papel altamente importante através da atuação de mulheres negras. Os encontros iniciados por Maria Beatriz Nascimento, que estava à frente da Semana Cultural Negra realizada na UFF em 1972, atraíram toda uma vanguarda negra que passou a construir um debate sobre o racismo e suas práticas sociais. O movimento negro fazia isso articulado com a exploração de classes, enquanto o movimento feminista tinha suas raízes no setor mais avançado da classe média branca.

Nesse momento vivia uma euforia sobre o chamado milagre brasileiro. No entanto, como indica Lélia, a “negadinha” sabia o que isso significava para a comunidade negra, por vezes esquecida no movimento negro brasileiro e o papel que as mulheres desempenhavam. Antes mesmo de exigir a organização de mulheres, elas discutiam em seu cotidiano, que era marcado, de um lado, pela discriminação racial e, de outro, pelo machismo. Esse machismo vinha tanto de homens negros quanto brancos, sem jamais esquecer os aspectos mais acentuados do machismo negro, que se articulam com níveis compensatórios, efeitos diretos da opressão racial. As mulheres negras passam pela experiência da humilhação policial diante da dúvida sobre a inocência de seus companheiros.

Portanto, o feminismo negro tem uma diferença específica em relação ao feminismo do ocidente: a solidariedade com a experiência comum dos homens negros. Por esse motivo, após discussões entre essas mulheres, formou-se o “grupão” do qual participavam Beatriz Nascimento, Marlene, Vera, Mara, Joana, Alba e outras. Esse grupo compartilhava as discussões das mulheres com o restante da organização, a fim de que todos refletissem sobre a condição das mulheres negras. Em 1975, algumas mulheres deixaram o “grupão” para então construírem um movimento independente de mulheres negras, como os coletivos Aqualtune (1979), Luiza Mahin (1980) e o Grupo de Mulheres Negras do Rio de Janeiro. No entanto, essas mulheres não se distanciaram do movimento negro, que ainda refletia a prática do grupo dominante, onde o papel das mulheres era limitado aos afazeres considerados mais “femininos”.

Entretanto, mulheres e homens negros se conhecem muito bem e, apesar de todas as disputas existentes, possuem uma história cultural comum. Assim, o plano político desenvolvido por eles se desenvolve em um nível mais igualitário, pois suas raízes pertencem ao mesmo solo. A competição entre homens negros e suas companheiras é explicada por isso, o que também possibilitou um espaço para as mulheres negras no interior do movimento negro, onde no Movimento Negro Unificado (MNU), as mulheres negras e o movimento LGBT puderam discutir suas especificidades em congressos. Isso ocorreu em um momento em que as esquerdas titubeavam em discutir questões que poderiam dividir o operariado.

As experiências das mulheres negras com o movimento de mulheres foram historicamente contraditórias. A participação das mulheres em congressos, encontros e no movimento feminista era vista como “agressiva” ou “não feminista”, pois reivindicavam que o racismo e suas práticas deveriam ser parte das lutas feministas. Afinal, o sexismo representava formas estruturais de opressão e exploração em sociedades herdeiras do colonialismo, como a nossa. A acusação de exploração das mulheres negras por suas patroas causava mal-estar, pois as mulheres negras argumentavam que a exploração do trabalho doméstico assalariado foi o que permitiu que muitas mulheres brancas pudessem se engajar na luta feminista.

Quando se denunciava a violência policial contra homens negros, as feministas brancas diziam que isso fazia parte da repressão da ditadura, os “heróis da luta contra a ditadura”, como se ambas as questões, exploração do trabalho doméstico e violência policial, não fizessem parte do mesmo aparato policial-militar. O que a feminista queriam dizer com “herois da ditadura” é que violência policial, fazia parte naquele momento, da luta dos homens contra ditatura, mas sabendo que historicamente essa violência militar se deu durante e pós ditadura. No entanto, sempre há aqueles que estão verdadeiramente comprometidos com uma sociedade verdadeiramente emancipada, e havia solidariedade dos setores mais avançados do movimento de mulheres, demonstrando interesse em divulgar iniciativas das mulheres negras, assim como colaborar em outros níveis.

Contudo, mesmo havendo aspectos positivos nos contatos com o movimento de mulheres, ainda persistem ambiguidades e contradições até hoje, de acordo com Lélia Gonzalez. Ela afirma que o movimento de mulheres ocidental e o movimento de mulheres brasileiro reproduzem o que ela chama de “imperialismo racial” mencionado por Bourne. Desse modo, há setores do movimento de mulheres que usam, sem escrúpulos e de forma manipulativa, as chamadas “mulheres de base” ou “populares” como massa de manobra para votar em propostas que são determinadas principalmente pela direção masculina de certos partidos. A denúncia de Lélia diz que, durante a divisão das falas no comício das Diretas Já, realizado em 21 de março no Rio, uma militante branca ficou indignada pelo fato de uma mulher negra ter sido chamada para fazer uma fala sobre as mulheres em nome do Partido dos Trabalhadores.

Houve também declarações como “mulheres negras despertam mais cedo para a sexualidade” ou mesmo que “a questão da mulher negra era uma questão de classe e não de raça”. Por esses motivos, mulheres negras optaram por se organizar no movimento negro e não no movimento de mulheres. As mulheres negras que militavam no movimento de mulheres tinham muita dificuldade em aprofundar a questão racial. Lélia indica que isso faz parte do fato de que muitos brancos acham que não existe racismo, ou seja, “o negro sabe o seu lugar”.

O encontro de 1982 entre o Movimento Negro e o Movimento de Favelas, durante a campanha eleitoral daquele ano, permitiu a atuação conjunta desses movimentos que vinham atuando de forma paralela. A chamada política de abertura possibilitou a criação de novos partidos, atraindo setores que estavam à margem do processo político-partidário. Os novos programas, partidos e movimentos preocupavam-se em lançar pessoas que faziam parte da camada popular, resultando nas candidaturas do Movimento Negro e do Movimento de Favela, como as de Lélia Gonzalez, Jurema Batista e Benedita da Silva.

O Movimento Negro e o Movimento de Favelas passaram a aprofundar sua consciência racial e de gênero, levando em consideração as necessidades concretas da comunidade negra. Essa necessidade envolvia a luta contra a discriminação racial e sexual, articulando-a à exploração de classe. A pauta comum entre esses dois movimentos era a violência policial, que trouxe resultados bastante frutíferos, embora também tenha havido resultados negativos para ambos os movimentos no âmbito eleitoral. Por esse motivo, era necessário fazer uma avaliação sobre a atuação dos candidatos negros nos partidos de oposição durante o processo eleitoral.

A partir daí, os movimentos passaram a atuar de forma mais unitária, se desdobrando em várias iniciativas. Um exemplo disso foi a presença do movimento de favelas no encontro promovido pelo Grupo de Mulheres Negras no Rio de Janeiro, que teve ampla cobertura e divulgação no jornal “Favelão”, criando organizações vinculadas às áreas periféricas. Isso levou à criação da vice-presidência comunitária no interior do movimento negro, promovendo uma articulação entre os movimentos de mulheres, negros e de favelas. Por iniciativa de Benedita da Silva, realizou-se o I Encontro de Mulheres de Favelas e Periferias em março de 1983, abrindo novas expectativas para ambos os movimentos. Benedita, é filiada ao partido dos trabalhadores (PT), e continua sendo uma figura central no construção do movimento negro e de mulheres no Rio de Janeiro, mas que se destoa das construção mais radicais do debate,  a qual acham que a luta antiracista e feminista, só haver melhor consequencia, se essas foram voltadas para mudança da estrutura da sociedade, ou seja, também ganham sentido anticapitalista.  

No mesmo ano, 1983,  foi criado o coletivo de mulheres negras chamado NZINGA, uma das suas fundadoras, Lélia Gonzalez. O coletivo recebeu esse nome em referência à reivindicação de resgatar a história da África, que, segundo eles, a história oficial só fala dos opressores. Elas usavam um pássaro como símbolo, associado à tradição nagô, onde a ancestralidade feminina é representada por pássaros, utilizando as cores amarela de Oxum e roxo do movimento internacional de mulheres. Em julho de 1983, em associação com a Associação de Moradores do Morro do Andaraí, Jurema Batista foi a Lima, no Peru, para o II Encontro Feminista da América Latina e do Caribe, representando o grupo de mulheres negras do Rio de Janeiro. A atuação do coletivo de mulheres negras foi tão relevante que conseguiu criar um Comitê Antirracista no encontro. Dois anos depois, em 1985, realizou-se o III Encontro Feminista da América Latina e do Caribe em Bertioga, SP. Nesse momento, houve a organização do movimento de mulheres negras em nível nacional e continental.

A polêmica com feminismo do ocidente

A polêmica estabelecida foi a necessidade de uma ampla inclusão do feminismo, no sentido de feminismos plurais, com maior participação de mulheres de forma ampla. A importância desses encontros foi reconhecida por diversas pesquisadoras feministas, pois contribuíram para articulações, tanto de forma informal quanto formal, estabelecendo uma “gramática política feminista comum”, por meio de coalizões e conflitos estabelecidos. Um dos conflitos ocorreu devido ao empobrecimento e à repressão de um movimento de mulheres na região, composto por mulheres trabalhadoras pobres e/ou negras e indígenas, em oposição ao setor branco/mestiço e de classe média do feminismo em seus primeiros tempos. Entre os Encontros Feministas Latino-Americanos e do Caribe, a terceira edição marcou o debate sobre a inclusão/exclusão do feminismo.

O fato de o encontro ter sido marcado pelo episódio das mulheres, a maioria negras, do Rio de Janeiro, que queriam participar, mas não tinham dinheiro para pagar a taxa de inscrição e foram impedidas, estabelece uma tensão política. Acredita-se que o incidente do ônibus tenha sido tramado por partidos políticos para desacreditar o feminismo. Por outro lado, houve denúncias de que a questão de raça e classe não ocupava um lugar central na agenda do encontro, e as mulheres negras e pobres não tiveram uma participação significativa na elaboração dessa agenda. A discussão sobre o grupo de mulheres impedidas de entrar repercutiu durante todo o encontro. O jornal O Estado de São Paulo noticiou: “Encontro Feminista não aceita mulheres que não podem pagar”.  Esta e outras notícias  desencadeou, uma denúncia que questionava a democracia racial no Brasil, que colocava as mulheres negras em condições desfavoráveis de inserção no trabalho, ao mesmo tempo em que a imagem do país era vendida como alegre e miscigenada.

Neste encontro, mulheres negras reivindicaram, segundo Jafet, estabeleceu um “nós” coletivo, um plano comum no movimento feminista. Luiza Bairros, que na época era militante do Movimento Negro Unificado e posteriormente se tornou ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), questionou os sentidos do feminismo. Ela afirmou: “Houve um primeiro momento do movimento feminista de manter uma unidade, um certo fechamento, no sentido positivo da palavra, em cima de questões específicas, mas eu creio que chegou o momento da gente começar a olhar o que existe de diferente no movimento, o que existe de aparentemente contraditório [interrupção por palmas da plenária]. E se a gente começar a enxergar isso de frente, acho que vai ter sido dado um salto qualitativo e quantitativo muito importante.”  Neste sentido, como coloca,  Mariana Jafet,  ela destacou a importância de trabalhar enquanto mulheres negras, levando em conta a especificidade étnica e a forma especial de inserção na sociedade determinada por essa condição.

Lélia estava presente nesse encontro. O debate do feminismo era atrelado ao marxismo no Brasil, e acreditava-se  que o capitalismo era um sistema que envolvia a exploração de classe e opressões como o machismo, a homofobia e o racismo. Assim, havia desafios para avançar na luta contra esse sistema complexo, o que também incluía o debate sobre os sujeitos políticos de uma transformação social e os sentidos dessa transformação.

Segundo, Mariana Jafet, o sentido que as marxistas deram é que somente a “luta geral” (a luta contra a exploração de classe, tendo como principal sujeito a classe trabalhadora) não resolveria as questões “específicas” (as opressões). As pautas específicas eram subordinadas ou até mesmo preteridas em relação ao que era considerado geral. Em outras palavras, o movimento feminista marxista havia dado prioridade ao que era considerado urgente.

O feminismo negro liberta o feminismo ocidental

A ativista Luiza Bairros chamou outras mulheres – universitárias, sindicalistas, de coletivos de mulheres negras – para se juntarem a ela. Elas queriam mostrar algo às demais participantes, uma mensagem final delas, que é um pouco da história das mulheres negras e do seu processo de resistência na luta que o povo negro desenvolveu e continua desenvolvendo neste país pelo direito de existir como ser humano [palmas]. Em seguida, o grupo de cerca de 15 mulheres negras começou a cantar.

A canção tinha uma letra que atualizava a memória das lideranças femininas nos quilombos e nas revoltas contra a escravidão no Brasil, como Luiza Mahin na Revolta dos Malês, Aqualtune no Quilombo dos Palmares, Zeferina no Quilombo do Urubu, e também fazia referência à poderosa rainha africana Nzinga Mbandi, também conhecida como Negra Ginga de Angola, no século XVII. A letra era uma adaptação do poema “Salve a mulher negra” de Oliveira Silveira, e foi musicada pelas participantes do evento:

Luiza Mahin
Chefa de negros livres
E a preta Zeferina
Exemplo de heroína
Aqualtune de Palmares
Soberana quilombola
E Felipa do Pará
Negra Ginga de Angola
África liberta
Em tuas trincheiras
Quantas anônimas
Guerreiras brasileiras

Ou seja, a filiação da memória do “movimento de mulheres negras” no Brasil é com a reivindicação da história de lutas anteriores, na qual se reconhecem e que se relacionam à organização política na África, marcada pela colonização, escravidão e resistência a esses processos de dominação. O encontro de Bertioga fez emergir no movimento de mulheres negras o I Encontro Nacional de Mulheres Negras em Valença, em 1988, demonstrando a importância da organização de mulheres negras. O feminismo chamado de “radical” era sectário, pois se baseava no modelo “ariano de explicação do racismo”. Mulheres do PT-PDT no encontro de Bertioga foram acusadas de tramar contra o andamento do encontro, o que gerou um clima de desconfiança entre as organizadoras. Chegou ao ponto em que mulheres feministas “radicais” afirmaram que a revolução só poderia ocorrer no avanço entre homens e mulheres, criando uma dicotomia entre macho opressor e mulheres oprimidas, o que, segundo Lélia, perdia a dialética, pois se esquecia das opressões raciais e da exploração de classe.

Dessa forma, esquecia-se da expropriação econômica e da apropriação cultural que as classes dominantes brancas exercem sobre mulheres e homens negros. A história de negras e negros é feita de resistências e lutas, nas quais as mulheres negras são protagonistas graças a uma dinâmica de memória ancestral, que não tem nada a ver com o eurocentrismo do feminismo ocidental. O feminismo negro, como fenômeno internacional, teve ênfase no isolamento de mulheres negras nos Estados Unidos, em que o gênero era visto de maneira central, sem perspectiva de classe e raça. A partir disso, surge uma reflexão crítica sobre a noção de feminismo, passando-se a adotar o termo “mulherismo”, traduzido por Aline Walker em “A Cor Púrpura”, aprofundando a noção de mulheridade e reivindicando o papel ancestral nessa dinâmica. Lélia reivindica que o papel da mulher nas antigas sociedades africanas não era de subordinação à cultura “judaico-cristã”. Por exemplo, no Antigo Egito, nos reinos dos Ashanti ou dos Yorubá, as mulheres ocupavam um papel social importante, e o poder político era compartilhado.

Considerações Finais

As Amefricanas da América Latina demonstram certa resistência ao termo feminismo, pois são herdeiras de uma cultura ancestral e compreendem melhor a mulheridade do que o feminismo, atribuindo a ele um sentido coletivista. Dessa forma, a noção de ser “amefricana” perpassa pela responsabilidade de reivindicar enquanto feministas negras, pois as marcas da exploração sexual e econômica são subordinadas à questão racial e sexual. Portanto, destaca-se a importância da organização de mulheres negras.

Nesse sentido, nós do coletivo juntas acreditamos, enquanto marxistas que ainda que o sujeito revolucionário da luta socialista, seja classe trabalhadora, (e deixo claro que acreditamos sem dúvida nisso), essa classe não está neutra de gênero e raça, ou/e  até porque não -,  sexualidade,  na medida que capitalismo é um sistema complexo de coisas, o que vem se debatendo enquanto divisão sexual do trabalho, também tem contornos raciais, em sociedades multiétnicas. Assim, nossa tarefa e orientação, é enegrecer o feminismo, pois a luta das mulheres negras, levadas até às últimas consequências podem mudar o mundo.  

Referências:

CESTARI, M. J. Sentidos e memórias em luta : mulheres negras brasileiras no III Encontro Feminista Latinoamericano e Caribenho (1985). Nuevo mundo mundos nuevos, 26 nov. 2014.

HOOKS, BELL. E eu não sou uma mulher? [s.l.] Editora Record, 2019.

GONZALEZ, L. Primavera para as rosas negras. Editora Filhos da África, 2018.

LÉLIA GONZALEZ; RIOS, F.; MÁRCIA LIMA. Por um feminismo afro-latino-americano : ensaios, intervenções e diálogos. Editorial: Rio De Janeiro: Zahar, 2020.

DAVIS, A. Mulheres, raça e classe. [s.l.] Boitempo Editorial, 2016.

AMÉLIA, M. Breve história do feminismo no Brasil e outros ensaios. [s.l.] Alameda Casa Editorial, 2018.

 COLLINS, P.  Pensamento feminista negro. [s.l.] Boitempo Editorial, 2019.

Werneck, Jurema, “Nossos passos vêm de longe! Movimento de mulheres negras e estratégias políticas contra o sexismo e o racismo“, Revista da ABPN, 2010, v. 1, n°1, p. 7-17.

Carneiro, Sueli, “A organização nacional das mulheres negras e as perspectivas políticas”, Cadernos Geledés, 1993, n°4, p. 13-18.

Moreira, Núbia, A Organização das Feministas Negras no Brasil, Vitória da Conquista – Bahia, Ed.UESB, 2011.

Pedro, Joana, “Narrativas fundadoras do feminismo”, Revista Brasileira de História, 2006, v. 26, n°52, p. 249-272.

NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.


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