Justiça Reprodutiva, legalização do aborto e a ADPF 442

Justiça Reprodutiva, legalização do aborto e a ADPF 442

Por um setembro de lutas por justiça reprodutiva!

Adriana Herz Domingues e Alana Landal 14 set 2023, 11:11

Por que o aborto é crime? Uma história de controle dos corpos das mulheres

Quando pensamos no aborto, temos a impressão de que a prática sempre foi mal vista e apenas agora as mulheres começaram a lutar por esse direito. No entanto, a história não é bem assim. A interrupção da gravidez já foi uma prática bastante comum em momentos nos quais as mulheres tinham outros métodos de controle da fertilidade e de dar fim a uma gravidez indesejada. O aborto foi criminalizado na Europa na passagem do modo de produção feudal para o capitalismo, um período no qual controlar os corpos da classe trabalhadora se tornou uma necessidade para a classe dominante emergente, a burguesia. Essa transição não foi pacífica, e o controle dos corpos foi necessário para encerrar levantes e obrigar as pessoas a trabalharem para os novos donos dos meios de produção. Para as mulheres, o controle dos corpos significou uma série de violências, acompanhadas do controle reprodutivo da classe trabalhadora, ou seja, a proibição da interrupção da gravidez, a destruição de conhecimentos sobre os ciclos menstruais, etc. Ou seja, desde o início a criminalização do aborto está intrinsicamente ligada à perda de poder político da maior parte da população.


Justiça Reprodutiva no Brasil: Um encontro de gênero, classe e raça

No Brasil, as violências ligadas à reprodução da classe trabalhadora precisam ser pensadas a partir do processo de escravização de homens e mulheres africanos e indígenas, e de seus descendentes. A preocupação dos donos de terras com a reprodução social, em especial a partir da proibição do comércio de pessoas escravizadas, resultou em violências absurdas, nos quais mulheres eram tratadas enquanto animais reprodutores e não enquanto seres humanos. Os conhecimentos das populações africanas trazidas pelo Brasil, e das populações originárias, sobre seus corpos também foi fortemente combatida.

O aborto práticado por terceiro se torna crime no Brasil em 1830, e o auto-aborto se torna crime apenas em 1890. Com o Estado Novo, posições natalistas ganham força e o código penal de 1941 não só reitera a proibição da interrupção da gravidez, mas também de práticas destinadas a evitá-la. Assim, a criminalização do aborto se tornou mais uma forma de controlar as mulheres que não se submetem ao formato tradicional da família. Durante a Ditadura Militar, no entanto, se inicia uma preocupação com o crescimento da população pobre e negra e há um investimento em ações como a Bemfam (Sociedade Civil Bem-Estar Familiar no Brasil) para controle de natalidade, especialmente no Nordeste. No Brasil, não temos casos de esterilização forçada em massa como no caso da ditadura Fujimori do Peru ou mesmo dos Estados Unidos. Mesmo assim, os movimentos de mulheres começam a denunciar a esterilização por coerção e falta de alternativas de contracepção como uma política de Estado alternativa ao combate à pobreza. Com a redemocratização temos avanços importantes, como a conquista do PAISM (Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher, ligado ao Ministério da Saúde) em 1983 e a descriminalização do aborto em caso de risco à vida, estupro e feto anencéfalo.


Mesmo assim, o aborto inseguro hoje mata uma mulher a cada dois dias no Brasil, sendo que as mulheres negras tem chances três vezes maior de morrer do que as brancas. Isso porque mulheres ricas ainda conseguem encontrar pílulas vendidas clandestinamente, clínicas privadas ou mesmo viajar para fora do Brasil. Por outro lado, mulheres pobres recorrem a métodos inseguros em momentos de desespero. Nesse sentido, é importante lembrar que o aborto quando realizado conforme o protocolo estabelecido pela Organização Mundial de Saúde é extremamente seguro e que até os três meses de gestação o feto não tem nenhuma senciência (emoções, sentimentos ou capacidade cognitiva). Aliada a criminalização temos a falta de educação sexual nas escolas, para que as mulheres e meninas possam tomar sua próprias decisões em relação a seu futuro reprodutivo, e a dificuldade em muitos lugares de ter acesso a métodos contraceptivos.

Além disso, é importante notar que quando falamos de justiça reprodutiva, não falamos apenas do direito de escolher quando manter ou interromper uma gravidez. Mas também, sobre o direito à saúde, educação e à uma vida digna para os filhos de todas as mulheres. Pois os mesmos que são a favor da criminalização do aborto, são aqueles que defendem as chacinas que assassinam os filhos das mulheres nas favelas e periferias, aqueles que defendem a precarização da educação pública e do SUS e que durante a pandemia nos negaram vacinas.

A legalização do aborto na América Latina e o enfrentamento à extrema-direita

Nos últimos anos, o ascenso do movimento feminista nos perimitiu avançar em muitos debates. Na América Latina, um dos principais avanços foi na legalização do aborto na Argentina, Chile, México e Colômbia. Depois de muitos anos de debate, luta, organização e enfrentamento nas ruas, as feministas latino-americanas conseguiram avançar no controle sobre seus corpos e no reconhecimento de seus direitos. Infelizmente no entanto, essa se tornou uma pauta central de enfrentamento do feminismo pela extrema-direita, nos Estados Unidos, por exemplo, o movimento liderado por Trump conseguiu retroceder a decisão de Roe vs Wade e o aborto deixou de ser legalizado em todo país.

De forma similar, vivemos um retrocesso na opinião pública nos últimos anos no Brasil. Em 2015 as feministas ganharam nas ruas quando Eduardo Cunha, então presidente do Congresso Nacional, tentou proibir a pílula do dia seguinte. Em 2016, o Ministro Barroso do STF inocentou uma mulher pela prática do aborto, impulsionando a ADPF 442 do PSOL debatida abaixo. No entanto durante o governo Bolsonaro, as mulheres viveram um período nebuloso no que diz respeito aos direitos reprodutivos e, consequentemente, o debate sobre o aborto como uma escolha livre da mulher avançou de forma tímida, visto que a luta do momento era a garantia de direitos básicos. Lembramos do caso de uma menina de 11 estuprada por seu padrasto que quase teve sua tentativa de aborto legal impedida pela então Ministra das Mulheres Damares Alves.

A derrota do Bolsonaro foi uma vitória para as mulheres, mas para garantir nossos direitos e avançar cada dia mais em direção à autonomia e liberdade precisamos derrotar o bolsonarismo, que ainda tem suas raízes fortes. É preciso o enfrentamento aos inimigos das mulheres, àqueles que querem usar nossos corpos como ferramenta política do patriarcado e do capitalismo. O direito de decidir deve ser tratado como assuntos de saúde pública, e não de polícia.

A ADPF 422: Um primeiro passo para o Brasil


A ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 442, foi protocolada em 2017 pelo PSOL e Instituto ANIS, com o entendimento de que a criminalização do aborto viola os preceitos fundamentais da dignidade da pessoa humana, da cidadania e da não discriminação, bem como os direitos fundamentais à liberdade, à igualdade, à proibição de tortura ou tratamento desumano ou degradante, à saúde e ao planejamento familiar. Em 2018, o Brasil acompanhou a primeira audiência pública sobre a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação, gerando extensa discussão e disputa da opinião pública sobre o tema e colocando em pauta a autonomia da mulher em relação ao seu próprio corpo.

Após quase 5 anos de tímidos avanços e muitos retrocessos, essa semana a Ministra Rosa Weber autorizou a votação da ADPF 442 pela Corte, colocando novamente o assunto no centro da discussão sobre direitos reprodutivos. Se olharmos para a experiencia dos países latinos que descriminalizaram nos últimos anos, as discussões públicas sobre o aborto foram essenciais para a ampliação do apoio entre a população e o consequente aumento da pressão política para a aprovação – experiências que podem nos ajudar a organizar a luta por aqui. Por isso, esse é um momento de extrema relevância para o movimento feminista no Brasil, em que devemos ampliar o debate em defesa da vida das mulheres e avançar na retomada do nosso direito de decidir! Precisamos fazer pressão para que a ADPF 442 seja aprovada o quanto antes, pois somente assim poderemos pensar em políticas públicas eficazes que garantam nossa vida e dignidade.

Nós devemos apostar na agitação e mobilização neste mês de setembro, aproveitando o dia 28 que se aproxima. O dia de luta pela descriminalização do aborto na América Latina e Caribe já uma data importante no calendário de lutas do movimento feminista, e este ano, no Brasil, pode servir de combustível para a batalha que enfrentaremos.

Nem presas, nem mortas! É pela vida das mulheres!

Fontes:

A BEMFAM : do planejamento familiar à ética da existência – Solange Aparecida de Souza Monteiro e Maria Regina Momesso https://publicacoes.unifran.edu.br/index.php/dialogospertinentes/article/view/3789

Direitos Reprodutivos e Racismo no Brasil – Edna Roland https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/16469/15039

Modernidade e cidadania reprodutiva – Maria Betânia Ávila https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/16070/14604

Calibã e a bruxa – Silvia Federici


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