O outono feminista em defesa do aborto legal
A luta contra o retrocesso representado pelo PL do estuprador coloca o movimento de mulheres novamente nas ruas
Junho de 2024 já está marcado por um potente levante feminista contra mais uma investida dos setores bolsonaristas e fundamentalistas contra a vida de meninas e mulheres. Após a açodada votação na Câmara dos Deputados do regime de urgência do PL 1904/2024 – que criminaliza o aborto após a 22ª semana de gestação, inclusive no caso de gravidez resultante de estupro – a revolta que já se acumulava na opinião pública e nas redes sociais contra este nefasto projeto transbordou para as ruas em menos de 24 horas. Foram milhares de mulheres em dezenas de cidades em luta pela derrubada do projeto de lei.
ATAQUES AO ABORTO LEGAL
Nos últimos anos, a extrema direita brasileira tem tido como tática de mobilização de sua base mais fanática o ataque ao direito ao aborto legal no país. Ainda no governo Bolsonaro, foram numerosas as tentativas de obstruir o acesso a este direito, conquistado pelas mulheres brasileiras há mais de 80 anos.
O mais simbólico exemplo desta perseguição fundamentalista foi o caso, em 2020, da menina capixaba grávida após ser estuprada por anos pelo próprio tio. Ela e sua avó peregrinaram por uma série de serviços de saúde sem conseguir acessar o direito ao aborto legal. Além da dificuldade em realizar a interrupção da gravidez, que era seu direito, esta criança enfrentou uma série de manifestações e intimidações de militantes da extrema-direita. A menina precisou viajar a Pernambuco para poder abortar em um hospital que aceitou recebê-la, mas precisou entrar no estabelecimento escondida no porta-malas de um carro para se esquivar da fúria de bolsonaristas que a chamavam de assassina na porta do serviço de saúde.
Foi com este cenário de barbárie contra a dignidade de meninas e mulheres que o governo Bolsonaro tentou emplacar uma portaria que obrigava a mulher ou menina que procurasse o aborto legal a uma verdadeira tortura psicológica, como escutar batimentos cardíacos do feto antes de realizar a interrupção da gestação.
Estas medidas de Damares, Bolsonaro e Pazuello foram suficientes para que servissem de sinalização ao bolsonarismo em todo o país. A linha de atacar o direito ao aborto previsto em lei no Brasil se espalhou pelas cidades e estados do país. Hoje vemos em diversas cidades legislações aprovadas ou em debate nos parlamentos que constragem as vítimas de estupro a acessarem o direito ao aborto legal.
A prefeitura de Ricardo Nunes em São Paulo é uma vitrine da extrema-direita no que diz respeito ao retrocesso no direito de meninas e mulheres. Sua gestão tem atuado para fechar serviços históricos de aborto legal na cidade, como é o Hospital Vila Nova Cachoeirinha, além de perseguir – em parceiria com o Conselho Regional de Medicina de SP – médicas que atuam nesses serviços e pacientes atendidas por elas.
Mais recentemente, o Conselho Federal de Medicina entrou em jogo para reforçar a luta misógina contra nossos direitos. Em abril, o CFM editou uma resolução que proibia a assistolia fetal para realização de abortos após a 22ª de gestação. Por representar um ataque flagrantemente inconstitucional, o PSOL, junto com a Anis – Instituto de Bioética e o Projeto Cravinas, ingressou com uma ADPF no Supremo Tribunal Federal para que esta resolução fosse derrubada. Uma liminar concedida pelo Ministro Alexandre de Moraes suspendeu a resolução e também a cassação de registro de médicas promovidas com base nesta medida ilegal.
Foi diante desse grave cenário que o Coletivo Juntas! lançou no mês de maio a Campanha Nacional Nem um passo atrás: Aborto Legal é direito! com o objetivo de fortalecer a resistência aos ataques da extrema direita aos nossos direitos.
O PL DO ESTUPRADOR
Na Câmara dos Deputados, a bancada fundamentalista apresentou há um mês o Projeto de Lei 1904/2024, que visa equiparar o aborto, quando realizado após a 22ª semana de gestação, ao crime de homicídio, mesmo quando a gravidez for resultante de estupro. Se aprovado, o Brasil passaria a ter uma legislação com penas mais rigorosas para as vítimas de estupro do que para os estupradores. E, sabemos, são as meninas e mulheres negras aquelas que seriam atingidas de maneira mais severa, por serem as principais vítimas de violência sexual no país. A apresentação da proposta coincide com o debate público ensejado pela resolução do CFM, que apontava para o mesmo objetivo, e não por acaso foi protocolada no mesmo dia em que Moraes concedeu a liminar de suspensão da norma do Conselho. Os fundamentalistas querem armar uma guerra com o STF colocando em jogo a vida de meninas e mulheres brasileiras.
No contexto de escalada da violência política da extrema direita na Câmara dos Deputados, derrotas do governo Lula no Congresso, avizinhamento das disputas eleitorais nas cidades e aproximação da sucessão da presidência da Câmara dos Deputados, Arthur Lira sinalizou aos mais radicais bolsonaristas e colocou em pauta a votação do regime de urgência deste PL da Gravidez Infantil, como o movimento feminista o apelidou, ou PL do Estuprador, como ganhou fama na opinião pública.
Com uma votação de 24 segundos realizada de maneira furtiva, Lira aprovou a urgência do projeto de lei na última quarta-feira. A tratorada do presidente da Câmara junto ao absurdo conteúdo do PL causaram enorme comoção na opinião pública e logo a indignação tomou as ruas.
MOVIMENTO FEMINISTA DE VOLTA ÀS RUAS
Na manhã seguinte à aprovação da urgência ao PL do estuprador, São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Florianópolis já contavam com chamados de manifestações espontâneas. Com menos de 10h de convocação, os atos contaram com milhares de pessoas. Nos dias seguintes foram dezenas de cidades que se somaram à mobilização. No último sábado, a cidade de São Paulo contou com um novo ato com mais de 10 mil pessoas ocupando a Avenida Paulista.
Arthur Lira e os fundamentalistas provocaram o movimento feminista que, ainda que não tenha tido condições de coordenar mobilizações fortes no período mais recente, tem a viva memória e a experiência das lutas feministas da última década. Se em 2015 o feminismo brasileiro tomou as ruas contra um PL que também atacava os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e emparedou o então Presidente da Câmara Eduardo Cunha, agora as mulheres retomam o sentido de luta e dessa vez miram Arthur Lira, o maestro de mais esse ataque misógino à vida de meninas e mulheres.
É necessário manter aquecida a luta nas ruas até que o PL 1904 seja arquivado e o movimento feminista imponha mais esta derrota aos fundamentalistas, ao bolsonarismo e a Arthur Lira. Também deve seguir no horizonte a luta pelo aborto legal, seguro e gratuito para todas as meninas, mulheres e pessoas que gestam, a exemplo dos países latino americanos que têm avançado por este caminho.