A história das mães de Blumenau
Violência institucional contra mães solo pobres em Blumenau escancara conservadorismo, judicialização da maternidade e violações de direitos.
Há cerca de quatro anos, o alarmante caso do grupo de mulheres-mães conhecido como as Mães de Blumenau, vem chamando a atenção de feministas dentro e fora do Brasil. Trata-se de um grupo de mulheres submetidas à destituição da guarda e do poder familiar de seus filhos e filhas em recorrentes casos que expõe a cruel realidade da criminalização daquelas que se encontram à margem das expectativas de uma sociedade excludente.
Contabilizando um total de cerca de 16 mães e 24 crianças, a maior parte dessas mulheres se conheceu durante o andamento de seus processos judiciais. Ao identificarem flagrantes semelhanças entre seus casos, as Mães de Blumenau passaram, então, a compartilhar suas dores entre si e com a comunidade local. Montando verdadeiros acampamentos em frente ao fórum onde quase todos os processos tramitavam sob o jugo dos mesmos agentes públicos, encontraram forças para falar ao mundo que pobreza não é crime, e que seus filhos e filhas, colocados em abrigos de forma compulsória, tinham mães amorosas que lutavam pelo direito ao convívio familiar.
Assim, o caso de Blumenau exemplifica, de forma explícita, as camadas de violências que se sobrepõem sobre os corpos de mulheres-mães. As opressões observadas se multiplicam à medida em que famílias em situação de vulnerabilidade são, cada vez mais, empurradas em direção à margem da sociedade, encurraladas numa armadilha social que desumaniza as mulheres trabalhadoras de baixa renda por não corresponderem a ideais de maternidade inalcançáveis, principalmente para mães-solo.
Trata-se da fantasiosa e anacrônica perspectiva vitoriana de maternidade e família, atualmente bastante reforçada pela propagação dos ideais de um conservadorismo que conta com o apoio das chamadas “trad wives” – estereotipadas esposas tradicionais com destaque nas redes sociais e na política de extrema-direita de Santa Catarina. Nesse contexto, o perfil da mulher-mãe confinada ao ambiente doméstico e ao trabalho de cuidado não remunerado, parece ter sido incorporado como parâmetro pelo judiciário do estado, o qual julga e condena aquelas que não correspondem às prescrições classistas e discriminatórias.
Essas mães, dessa forma, foram e ainda são punidas, simplesmente por refletirem, em suas (r)existências, a real face da elite da região, uma classe dominante que traduz sua hipocrisia maniqueísta na invisibilização desses casos e no silenciamento dessas mães. Nesse sentido, o caso das Mães de Blumenau revela, de fato, o real produto das dinâmicas patriarcais de opressão e dominação: mulheres pobres e trabalhadoras, julgadas e condenadas por supostamente terem uma IST, um AVC, um ex-companheiro violento ou ainda um rótulo de alienadora parental estampado qual uma letra escarlate no peito.
Assim, o que o judiciário de Blumenau expõe com sua violência de gênero falso moralista e seus juízos discriminatórios, é o ápice de seu pensamento colonialista patriarcal. Retirar crianças pobres de suas famílias biológicas para realocá-las com a “família ideal”, no sentido universalizante e hegemônico do conceito de família, parece ser a regra na região. Essa família ideal, antes de tudo, seria aquela que não necessita recorrer a qualquer tipo de “assistencialismo”, termo que os conservadores catarinenses tanto criticam e evocam ao se referirem às políticas públicas que garantem a possibilidade de autêntica dignidade e mobilidade social para as famílias invisibilizadas.
Uma barreira social insuperável
São inúmeras as armadilhas que impedem a mobilidade social necessária para que essas mulheres atendam às demandas institucionais e sejam, utopicamente (ou distopicamente), consideradas suficientemente boas e exemplares para criarem seus próprios filhos e filhas. Entre elas destacam-se a criminalização e a patologização da exaustão física e mental advinda da sobrecarga sobre elas impostas. Nesse sentido, a sobrecarga materna, amplificada pela precariedade da situação econômica, demandaria do Estado planos eficazes de políticas públicas e benefícios assistenciais suficientes para que pudessem se adequar às exigências normativas do judiciário, e assim, talvez, conquistarem o voto de dignidade concebido por esse sistema.
Porém, o padrão de excelência pautado em expectativas completamente alienadas da realidade de uma mãe solo trabalhadora, não conta, e nem poderia contar, com políticas que proporcionem a essas famílias os padrões exigidos pelo sistema. Nesse sentido, chegou ao nosso conhecimento que até mesmo os benefícios utilizados para estigmatizar e desqualificar essas mães, como a renda cidadã e a bolsa família, foram suspensos após a retirada das crianças. Tal medida, de colocar essas mulheres em situação de vulnerabilidade ainda maior, agrava o ciclo de marginalização no qual estão inseridas, impossibilitando definitivamente qualquer chance de alcançarem o patamar de independência econômica esperado pelas equipes que avaliam as questões psicossociais que as habilitariam enquanto mães.
Na mesma direção, estão exigências e procedimentos que afrontam o movimento antimanicomial como um todo. Enquanto alvos frequentes de rótulos patologizantes, as mulheres-mães são encaminhadas para tratamentos psiquiátricos e psicológicos compulsórios como condição para reaverem a guarda das crianças. A partir de então, em buscas hercúleas pelo atendimento às demandas de um judiciário distante da realidade de quem depende do serviço público, necessitam alimentar o sistema excludente com múltiplos atestados médicos avaliando seu comportamento e suas faculdades mentais. Os laudos e pareceres, nunca suficientes, acabam adiando ainda mais os procedimentos legais, prolongando o afastamento das crianças. De forma perversa, o próprio prolongamento do afastamento é utilizado como justificativa para decisões contrarias a reintegração das crianças às suas famílias biológicas devido ao longo período de acolhimento em instituições ou com famílias acolhedoras.
Como se não bastasse, uma vez rotuladas como mães inadequadas, mesmo nos raros casos em que conseguem recuperar a guarda de seus filhos e filhas, permanecem sob constante suspeita, vigiadas por um sistema que as criminaliza em vez de apoiá-las. Dessa forma, qualquer deslize, presumido ou fabricado, serve como justificativa para que percam novamente a tutela das crianças, sendo submetidas, uma vez mais, a procedimentos altamente questionáveis, muitas vezes arbitrários, que confrontam protocolos oficiais e até mesmo tratados internacionais dos quais o país é signatário, como a Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU (ONU, 1989).
Portanto, o que se vê nos casos das Mães de Blumenau, é uma rede de apoio e assistência que ignora o fato de que o acolhimento e a adoção deveriam ser procedimentos extremos, adotados como ÚLTIMO RECURSO, E NÃO O PRIMEIRO. Nesse sentido, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (1990), é prevista a realização de cuidadoso acompanhamento psicossocial, para que apenas após sua conclusão se avalie a necessidade de transferência de tutela da criança, preferencialmente para membros de sua família extensa. Ou seja, o procedimento de adoção extensiva tem justamente a finalidade de respeitar os vínculos e as múltiplas configurações que constituem essas famílias, bem como suas diversas realidades culturais e afetivas.
Com base nesse entendimento, o Coletivo Juntas SC destaca que a rede referenciada precisa respeitar a legislação e os procedimentos padrões que buscam garantir o melhor interesse da criança. Portanto, torna-se imperativo ressaltar que, nesse conjunto de casos, toda a rede de apoio oferecida pelo Estado falhou em proteger e auxiliar essas famílias. Acreditamos que o sistema de apoio, que engloba o Conselho Tutelar, o CRAS (Centro de Referência da Assistência Social) e o CREAS (Centro de Referência Especializado da Assistência Social), entre outros, tenha se desviado de atribuições, protocolos, prazos e condutas processuais esperadas, colocando em risco ainda maior justamente a quem devia cuidado e proteção.
Os casos
Com relação às especificidades dos casos, características preocupantes se destacam, como a repetição das mesmas assinaturas determinando o destino dessas famílias: uma mesma juíza; uma mesma promotora; uma mesma equipe de assistentes sociais; os mesmos estigmas sobre as mulheres-mães; e a mesma faixa-etária de uma maioria afastada de suas famílias ainda antes de completar três anos de idade.
Além disso, as motivações para o acolhimento e institucionalização das crianças vão desde a baixa renda das mulheres, problemas de saúde físicos e mentais, instabilidade profissional, falta de moradia fixa, até situações de violência doméstica perpetradas contra as mulheres-mães; alegações que revelam um projeto de gentrificação em curso na cidade de Blumenau, o qual integra a política higienista que tem sido promovida em diversas cidades de Santa Catarina.[1]
Destacamos, também, o fato de que os números apresentados pelo Juntas SC no presente texto são ainda maiores do que aqueles veiculados na mídia em 2023 (Pessoa, 2023). Nesse sentido, acreditamos que a razão da divergência entre os dados possa estar relacionada ao silenciamento legal de muitas dessas mulheres, coagidas por possíveis retaliações que poderiam sofrer caso viessem a público denunciar as múltiplas violências sofridas.
Portanto, de acordo com fontes seguras, das 24 crianças envolvidas no caso das Mães de Blumenau, as mulheres conseguiram reaver a guarda e o poder familiar de oito dessas crianças, sendo que cerca de 14 delas não haviam sido reintegradas às suas famílias até fevereiro de 2025. Além disso, até a presente data, duas famílias que compõem o grupo passam por graves situações de revitimização que incluem múltiplos acolhimentos institucionais em meio a importantes falhas da rede de suporte e assistência às famílias.
O panorama dos casos reforça a face brutal da violência institucional, marcada por práticas que perpetuam padrões de discriminação sistemática. Com exceção de uma mulher imigrante venezuelana, todas as vítimas são mães solo. A maioria das crianças removidas tinha entre 0 e 2 anos de idade no momento do acolhimento institucional, evidenciando a precariedade de apoio às famílias ainda durante a primeira infância das crianças.
Casos como o de Suzana*, imigrante latino-americana que perdeu a guarda dos filhos por causa da pobreza e da instabilidade de moradia, expõem um viés de classe e xenofobia que viola frontalmente princípios de dignidade e igualdade. Entre as “provas” apresentadas contra ela, constou o absurdo relato de que teria dado um banho em seu bebê em temperatura ambiente no verão catarinense, evidenciando o caráter arbitrário das decisões.
A fragilidade dos argumentos que determinaram a incapacidade de maternar das mulheres se basearam em justificativas discriminatórias. Valéria, por exemplo, perdeu a guarda das filhas, Júlia e Joana, após sofrer um AVC que sequer deixou sequelas, simplesmente por não contar com uma rede de apoio durante sua recuperação. Já Virgínia, perdeu a guarda por alegações de uso de drogas e desemprego; Neide, mãe de Nina, teve a filha institucionalizada devido a um diagnóstico de transtorno bipolar; e Yolanda teve sua filha recém-nascida arrancada dos braços sob acusações de portar uma IST.
Diversas das histórias ainda demonstram como o processo de culpabilização de vítimas de violência doméstica foi utilizado como mecanismo de revitimização. Estela, sobrevivente de violência doméstica, perdeu o filho Marcos após deixá-lo aos cuidados da avó, acusada de abuso. Natalina perdeu a filha Roberta por denúncia do ex-marido agressor; Ingrid foi separada do filho João, de 6 anos, depois que o pai da criança foi acusado de abuso sexual, sendo responsabilizada e punida pela violência, em vez de devidamente apoiada para que pudesse proteger a criança. Diana, outra integrante do grupo, denuncia: “Perdi a guarda dos meus dois filhos, Rafaela, de 4 anos, e Lucas, de 1 ano. Fui acusada, sem provas, de ter sífilis e de ser negligente por ter que me mudar de endereço diversas vezes e por ter sido agredida pelo meu ex-companheiro” (Bernardes, 2022).
De forma geral, o que se percebe nos casos é um padrão no qual o intervalo entre a denúncia, o acolhimento das crianças, a destituição do poder familiar e a adoção é extremamente curto, desrespeitando prazos e procedimentos legais. Além disso, as mães envolvidas tiveram seus depoimentos ignorados e foram explicitamente discriminadas ao longo de todo o processo.
Concluindo
O caso das Mães de Blumenau vem alcançando grande repercussão nacional e internacional, motivando, inclusive, a visita de membro do Comitê dos Direitos da Criança da ONU, Luis Pedernera (Catie, 2023b), no estado de Santa Catarina. Mesmo assim, e apesar de todas as arbitrariedades relatadas, o Juntas não recebeu nenhuma informação apontando para a responsabilização de qualquer um dos servidores envolvidos nas violações. Nesse sentido, acreditamos que a falta de responsabilização dos agentes públicos tenha o potencial de motivar a retomada gradual da preocupante situação que, embora tenha apresentado uma aparente melhora no período de maior visibilidade do caso, atualmente parece estar se restabelecendo por meio das mesmas dinâmicas de poder e dominação já exaustivamente denunciadas.
Por fim, o coletivo Juntas sugere às leitoras e aos leitores que acompanhem a página no Instagram criada pelas mães envolvidas no caso: @maesdeblumenausc. Nesta página, encontram-se informações em ordem cronológica de todos os acontecimentos desde os protestos organizados, as audiências públicas, entre outras informações. É de suma importância dar visibilidade ao caso principalmente em um espaço de maior alcance de informações como as redes sociais.
*Os nomes das mulheres e crianças citadas foram alterados a fim de preservar a identidade das famílias
Referências
KAMILE Bernardes. VÍDEO – Como foi audiência pública provocada por luta de mães pela guarda dos filhos em Blumenau. O Município, 31 ago. 2022. Disponível em: https://omunicipioblumenau.com.br/video-como-foi-audiencia-publica-provocada-por-luta-de-maes-pela-guarda-dos-filhos-em-blumenau/ . Acesso em: 20 jul. 2025.
BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 128, n. 135, p. 13563, 16 jul. 1990
CATIE, Talita. Drama das Mães de Blumenau completa 1 ano com crianças de volta ao lar e mais reintegrações. NSC Total, 27 ago. 2023a. Atualizado em 28 ago. 2023. Disponível em: https://www.nsctotal.com.br/noticias/drama-das-maes-de-blumenau-completa-1-ano-com-criancas-de-volta-ao-lar-e-mais-reintegracoes/. Acesso em: 16 jul. 2025.
CATIE, Talita. “Histórias que preocupam”, relata membro da ONU após encontro com Mães de Blumenau. NSC Total, 26 abr. 2023b. Disponível em: https://www.nsctotal.com.br/noticias/historias-que-preocupam-relata-membro-da-onu-apos-encontro-com-maes-de-blumenau . Acesso em: 20 jul. 2025.
LUC, Mauren. Mães fazem vigília na Justiça de SC para recuperar filhos enviados para adoção. Folha de S.Paulo, 5 ago. 2022. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/08/maes-fazem-vigilia-na-justica-de-sc-para-recuperar-filhos-enviados-para-adocao.shtml. Acesso em: 16 jul. 2025.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção sobre os Direitos da Criança. Nova Iorque, 1989. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/convencao-sobre-os-direitos-da-crianca . Acesso em: 20 jul. 2025.
PESSOA, Fernanda. Mães de Blumenau: Ministério dos Direitos Humanos vai recomendar nova avaliação das famílias. Portal Catarinas, 9 fev. 2023. Atualizado em 12 maio 2023. Disponível em: https://catarinas.info/maes-de-blumenau-ministerio-de-direitos-humanos-vai-recomendar-nova-avaliacao-das-familias/. Acesso em: 16 jul. 2025.
[1] A exemplo cita-se Florianópolis e o projeto de lei 19044/2024, o qual visava a internação compulsória de pessoas em situação de rua.