A perda política da Caminhada de Mulheres Lésbicas e Bissexuais de SP em 2023
Reflexões de uma das organizadoras da caminhada.
Histórico da construção
A Caminhada de Mulheres Lésbicas e Bissexuais de São Paulo teve sua primeira edição em 2003, como um movimento espontâneo consequência do 5º SENALE (seminário nacional de lésbicas). Essa primeira edição não contemplava as mulheres bissexuais, era exclusivamente de lésbicas.
Em 2004, a segunda edição foi organizada pelos coletivos “Umas e Outras” e CFL (coletivo de feministas lésbicas).
A partir de 2006 até 2013, existem registros de que a caminhada tenha sido organizada pela LBL (a Liga Brasileira de Lésbicas) com apoios variados ao longo dos anos, desde instituições públicas, como a CADS (Coordenadoria de Diversidade Sexual da Prefeitura do Município de São Paulo) e a própria prefeitura, e até apoio de coletivos, organizações, sindicatos, conselhos de classe e empresas.
As mulheres bissexuais foram inseridas no nome da caminhada em 2006, em sua quarta edição.
Importante ressaltar que a caminhada foi originada por um grupo de mulheres cisgênero, lésbicas e majoritariamente brancas. As mulheres negras foram conquistando seu espaço na caminhada com o passar dos anos.
Em 2013, quando a caminhada completava dez anos, surgiu pela primeira vez, nos registros, a existência de uma organizativa independente de coletivos e organizações para realizar a Caminhada, porém o evento ainda tinha a assinatura da LBL como organização do ato.
Em 2014 houveram duas caminhadas. Uma realizada pela organizativa independente e outra organizada pela CFL. Enquanto a primeira teve sua concentração na praça do ciclista, a segunda teve concentração no MASP. Esse foi um marco importante para a caminhada, pois a partir de 2015, o ato passou a ser realizado pela organizativa da Caminhada de Mulheres Lésbicas e Bissexuais de São Paulo. Esta organizativa vem desde 2015 até 2022 seguindo regras que foram sendo construídas coletivamente ao longo dos anos.
Essas regras acordadas visavam garantir a autonomia da caminhada (por exemplo, ao não aceitar dinheiro de empresas, de partidos políticos, de mandatos ou até do poder público) e as regras de boa convivência, como as decisões deliberativas sempre serem tomadas coletivamente, em reuniões, e intransigência com preconceitos de qualquer ordem.
Reprodução de preconceitos
O ambiente da Caminhada de Mulheres Lésbicas e Bissexuais sempre foi de disputa. Nos últimos anos, temos enfrentado três grandes questões estruturais: o racismo, que somente pela maioria de participantes brancas já é em si um grande problema, além de manifestações explicitamente racistas, e episódios de bifobia e transfobia explícitos. Tanto nas falas em reuniões quanto pelo grupo de whatsapp.
É recente a conquista da comunidade trans de ter reconhecimento pelas orientações sexuais diversas. No entanto, a teoria genitalista[1] do feminismo radical não reconhece as mulheres trans e travestis como mulheres.
Dentro da organizativa da caminhada há um grupo de mulheres cisgênero que compactuam com uma visão muito próxima do feminismo radical trans excludente. Essas mulheres conseguem conceber a existência de mulheres trans e travestis, mas não lhes confere humanidade quando nega a todas as pessoas não cisgênero o direito a orientações sexuais diversas.
Com falas recorrentes como “as trans estão ocupando cada vez mais espaço e tirando a visibilidade das lésbicas” ou “(…)mulheres trans com seus queridos pênis têm mais visibilidade do que nós mulheres com buceta. Nada contra o bilau, mas há de se prever que quem joga nos dois times não jogará em time nenhum.” ou “eu sou lésbica porque o corpo masculino não me agrada”, entre outras.
Na XXI edição da Caminhada um homem cis que atua como drag queen foi tratado como travesti, sob justificativa de que que na visão de algumas mulheres da organizativa o rapaz é uma mulher, ignorando completamente que a identidade de gênero é auto-referida e demonstra a dificuldade de parte desse grupo em conseguir respeitar as diferentes identidades de gênero e expressões corporais. Outras formas de desrespeito e de desalinhamento com o movimento social LBT construído são também observadas com frequência entre esse grupo, como, por exemplo, ao inferir a identidade de gênero de outras pessoas a partir de estereótipos corporais, ou ao afirmar a orientação afetivo-sexual de outras mulheres pelo relacionamento afetivo-sexual-romântico que a pessoa vivencia no momento e não pela sua identidade, com reafirmação da bifobia e invalidação sistemática da orientação sexual de mulheres bissexuais.
Essas e outras manifestações dessa ordem afastam da organizativa da Caminhada, há anos, mulheres trans e travestis que são lésbicas ou bissexuais, mulheres negras e mulheres bissexuais cisgênero.
Esvaziamento da pauta política, autoritarismo e (mais) violência
A Caminhada de Mulheres Lésbicas e Bissexuais nasceu seis anos depois da 1ª parada do Orgulho LGBT de São Paulo, justamente com o instituto de ser um contraponto político à festividade da Parada. Sem a intenção de, com isso, invalidar o papel político que a Parada do Orgulho tem, de levar milhões de pessoas às ruas de São Paulo em torno da pauta dos direitos da comunidade LGBTIA+, mas com o reconhecimento de que, pelo porte do evento, é mais difícil fazer avaliações e construções políticas mais aprofundadas.
A Caminhada sempre se dispôs a construir um debate político sobre a realidade das mulheres lésbicas e bissexuais de acordo com a conjuntura, construindo coletivamente todos os anos um manifesto político. Neste ano de 2023 o manifesto da caminhada foi escrito por uma pessoa e complementado por duas ou três pessoas, sem reuniões coletivas ou debate político.
A mudança na forma de construir a Caminhada e de arrecadar dinheiro também foi decisão autocrática. De não receber dinheiro de empresas ou poder público, passou-se a fazer parcerias remuneradas com bares e artistas. A equipe organizativa passou a ser divulgada como equipe de “produção”, da mesma forma como em eventos festivos.
Decisões de como gastar os recursos conseguidos por doações de empresas, parlamentares, partidos e poder público deixaram de ser tomadas coletivamente e passaram a ser tomadas sem que o coletivo sequer tivesse conhecimento das propostas recebidas. Assim, acordos coletivos foram deliberadamente desrespeitados.
Um dos acordos coletivos era de que o trio elétrico serviria apenas para abrigar as apresentações artísticas, já que o caráter da Caminhada sempre foi de auto organização e horizontalidade, ao que houve acordo explícito e registrado em ata de que todas as falas políticas seriam feitas no chão e com microfone sem fio – o que não aconteceu, pois as três “mestres de cerimônia” começaram a abertura de cima do trio elétrico e todas as falas seguiram em desacordo com o combinado. Também em desacordo com decisão coletiva tirada em reunião, houve distribuição gratuita de bebida alcoólica no trio elétrico para quem estivesse com a pulseira da organizativa.
Ocorreu cerceamento das falas de algumas mulheres, tanto no grupo de whatsapp que serviria como espaço de comunicação do grupo organizativo, quanto em reuniões síncronas e on-line, e inclusive no trio elétrico no dia da Caminhada. Algumas mulheres foram violentadas sistematicamente por parte do grupo que, através de agressões, com a explícita intenção de que abandonassem o espaço para que o domínio da organizativa da Caminhada favorecesse somente algumas – o que efetivamente aconteceu por adoecimento das que foram alvo de violências.
E agora, sapatão?
A Caminhada é um espaço político de resistência da comunidade de lés e bis, trans e cis. É importante neste momento compreender que a disputa política evidenciada na construção da Caminhada deste ano denuncia as intenções individualistas e privatistas em detrimento da construção coletiva do movimento social e da luta histórica de mulheres lésbicas e bissexuais. Assim como em muitos espaços, no momento em que vivemos, é necessário resgatar a democracia dentro dessa organização. É imprescindível que sejamos intransigentes contra todo tipo de discriminação e preconceito e refutar as práticas autoritárias e fascistas. Portanto este é um chamado para que todas as pessoas que identificam ou vivem como mulheres lésbicas e bissexuais se disponham a construir um espaço plural e verdadeiramente democrático para que possamos, em 2024, fazer uma Caminhada que respeite a história de tantas que nos precederam.
[1] Genitalismo é a crença de que o gênero de uma pessoa é definido pela sua genitália, determinando assim que todos os indivíduos que nasceram com pênis serão homens e que todo indivíduo que nasceu com vulva será mulher.