Pandemia e vulnerabilidade das trabalhadoras e usuárias do sistema de saúde brasileiro
Diante da pandemia ficaram escancarados problemas como a precarização das trabalhadoras da saúde e de direitos reprodutivos das mulheres.
Em 11 de março de 2020 a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a doença do COVID-19 como pandemia global. A partir desse momento os governos de diversos países começaram a se planejar para mitigar os impactos da crise advinda do novo Coronavírus. No entanto, no Brasil, observa-se total despreparo para lidar com a situação, mesmo depois de 1 milhão de casos confirmados e mais de 60 mil mortos contabilizados. Essa falta de planejamento do Estado está afetando setores da sociedade de formas diferentes, as mulheres, em especial, estão mais vulneráveis por comporem grande parte da equipe de saúde dedicada ao combate do COVID-19, além de terem seus direitos reprodutivos ainda mais ameaçados nesse contexto de pandemia.
Segundo o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS) as mulheres representam 65% de todos os trabalhadores em saúde no Brasil. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) aponta ainda que elas também são maioria na equipe de enfermagem, maior força de trabalho em saúde no Brasil, responsável pelo cuidado direto com paciente. No entanto, é curioso perceber que na profissão de medicina o cenário se inverte e os homens representam maioria, somando 54,4% dos trabalhadores, conforme os dados da Demografia Médica no Brasil de 2018.
Como é de conhecimento geral, a enfermagem ainda é muito desvalorizada e mal remunerada, não existe sequer um piso salarial nacional, além disso, mesmo já tendo se provado como profissão autônoma, baseada em evidências cientificas, ainda é vista como auxiliar da medicina. A medicina, por sua vez, é considerada a autoridade máxima da área de saúde, sendo muito prestigiada intelectual, social e economicamente.
Essa feminização da equipe de enfermagem escancara a desigualdade de gênero característica da sociedade patriarcal, que estabelece papéis masculinos e femininos, sendo o segundo subordinado ao primeiro. Para que eles sejam muito bem consolidados, as mulheres são socializadas desde a mais tenra idade para exercer o trabalho reprodutivo, isto é, cuidar do lar e da família, função na qual as mulheres não recebem remuneração nem reconhecimento. Dessa forma, mesmo quando ingressam no mercado formal a lógica patriarcal não permite que as mulheres ascendam socialmente, elas continuam a receber menos prestígio e menor remuneração, pois tarefas voltadas ao cuidado, como o trabalho realizado pela equipe de enfermagem, são vistos apenas como uma extensão do trabalho doméstico.
Como afirma Silva (1986) a enfermagem “tem ocupado um status subordinado à categoria médica, definida na sociedade ocidental como profissão masculina”, de tal forma que “o trabalho da enfermeira não é desprestigiado por ser feminino, mas é feminino por ser desprestigiado”.
Trazendo mais dados, dessa vez da Pesquisa Perfil da Enfermagem no Brasil de 2013, percebe-se que essa ocupação não é incumbida somente a um determinado gênero, como também a uma determinada raça, haja vista que 53% da equipe de enfermagem é composta por trabalhadores pardos e pretos. A mesma pesquisa ainda aponta que pessoas brancas são maior parte da força de trabalho em enfermagem de nível superior, enquanto a maioria dos trabalhadores técnicos da equipe são pardos e pretos. Logo é possível afirmar que existe uma desigualdade entre as mulheres no setor da enfermagem.
Em outras palavras, convivem na área da saúde mulheres brancas com nível universitário, em funções administrativas e de direção, detentoras de autoridade e poder de comando sobre uma grande massa de outras mulheres, predominantemente negras e mais pobres, com formação de nível médio, que atuam diretamente em contato com os doentes, na base da pirâmide, sob suas ordens. (LOMBARDI, CAMPOS 2018, p. 33)
Diante disso, é possível afirmar que são as mulheres, negras em sua maioria, que estão em situação de maior vulnerabilidade. Elas compõem uma parcela significativa da força de trabalho dedicada ao combate do COVID-19, por isso lidam diretamente com os pacientes e estão mais expostas ao risco de infecção. Somado a isso elas ainda têm que enfrentar a falta de equipamentos de proteção individual, a estrutura precária dos serviços de saúde, além da exaustão física e mental decorrente das longas jornadas de trabalho.
A inércia do governo Bolsonaro frente aos desafios da pandemia, não afeta as mulheres somente no que concerne ao trabalho em saúde, ameaça também seus direitos reprodutivos, dificultando o acesso a métodos contraceptivos e ao aborto legal. Segundo o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), mais de 47 milhões de mulheres em todo o mundo podem perder o acesso à contracepção, levando a 7 milhões de gravidezes indesejadas nos próximos meses.
Devido à paralisação de fábricas e o fechamento de fronteiras, a circulação de preservativos e anticoncepcionais pode ser afetada, somado a isso em muitas cidades do Brasil a oferta de serviços voltados para a saúde sexual e reprodutiva está menor, sob a alegação de prevenção de grande fluxo de pessoas dentro das unidades de saúde. Isso é extremamente preocupante, pois o país já vinha enfrentando altas taxas de gravidez indesejada, morte materna e aborto clandestino, além de crescimento nos casos de Infecções Sexualmente Transmissíveis.
No que diz respeito ao aborto, esse direito já era muito restrito antes da pandemia, haja vista que era legal apenas em casos de estupro, anencefalia e risco á vida da gestante. O número ínfimo de unidades de saúde que faziam o procedimento no país restringia ainda mais o acesso.
Contudo, depois da chegada do COVID-19 ao Brasil, a situação ficou ainda pior, de acordo com reportagem da Revista AzMina em parceria com a Revista Gênero e Número, apenas 55% dos hospitais que realizavam aborto legal continuam atendendo durante a pandemia. Em alguns serviços de saúde, as repórteres identificaram que os profissionais não sabiam responder se a interrupção da gravidez estava disponível, em outros locais onde o procedimento podia ser realizado, exigiram o boletim de ocorrência do estupro, contrariando a norma técnica de Atenção Humanizada às Pessoas em Situação de Violência Sexual do Ministério da Saúde.
Fica claro, portanto, que a pandemia intensificou problemas estruturais que as mulheres já enfrentavam há anos. No que se refere às condições das mulheres no trabalho em saúde é preciso reconhecer que estereótipos de gênero e raça têm contribuído na desvalorização das profissionais e faz parte da luta feminista fomentar esse debate. A equipe de enfermagem não conta com um piso salarial digno até o momento atual e ainda luta por jornada de trabalho menor e aposentadoria especial, logo, também é preciso apoiar suas reivindicações.
Também é fundamental que a pauta dos direitos reprodutivos ocupe lugar central no movimento. Esses direitos têm sido desprezados, especialmente nesse contexto de pandemia e principalmente pelo atual governo, porque representam demandas de mulheres e nessa sociedade tudo o que é característico do feminino é considerado secundário e descartável. Exemplo disso foi a exoneração de integrantes do Ministério da Saúde em represália a uma nota onde tratavam de saúde sexual e saúde reprodutiva no contexto da pandemia do Coronavírus.
O subfinanciamento histórico do SUS também contribui diretamente para a precarização do trabalho em saúde. Com a Emenda Constitucional 95 de 2016 os gastos em saúde foram limitados durante 20 anos, em consequência disso a oferta de equipamentos, leitos, recursos humanos e insumos é menor, o que é muito preocupante em meio uma pandemia, haja vista que o Brasil conta com milhares de infectados por Coronavírus e o sistema corre risco de colapsar. A revogação dessa emenda e o investimento no sistema público de saúde são urgentes.
O presidente Jair Bolsonaro desde o início da pandemia ataca e desrespeita as recomendações da OMS principalmente no que tange ao cumprimento de isolamento social, seu discurso é de reabertura do comércio para movimentar a economia em detrimento da segurança da população. Além disso, seu governo já prevê o fim do auxilio emergencial, fazendo com que mais trabalhadores se exponham ao risco de contaminação para garantirem uma renda básica. Com isso é possível afirmar que o atual governo é responsável pelos números expressivos de infectados por COVID-19 no país, o que acaba gerando uma sobrecarga no sistema de saúde e consequente exaustão das trabalhadores da área. Por fim, é crucial reconhecer essa culpa do governo genocida de Bolsonaro e pressionar o presidente da Câmara dos Deputados para arquivar o pedido de impeachment.
FERREIRA, Letícia.; SILVA, Vitória Régia da. Só 55% dos hospitais que faziam aborto legal seguem atendendo na pandemia. AzMina, 2 de jun. 2020. Disponível em: https://azmina.com.br/reportagens/so-55-dos-hospitais-que-faziam-aborto-legal-seguem-atendendo-na-pandemia/ Acesso em: 20 jul.2020.
Maria Rosa, LOMBARDI; CAMPOS, Veridiana Parahyba. A enfermagem no Brasil e os contornos de gênero, raça/core classe social na formação do campo profissional. Revista da ABET, v. 17, n. 1, Jan/Jun. 2018. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/abet/article/view/41162
Silva GB. Enfermagem profissional: análise e crítica. São Paulo. Cortez, 1986.