Crise, bolsonarismo e o papel do feminismo
É necessário que o movimento feminista conquiste mais protagonismo nas mobilização pelo impeachment de Bolsonaro, por vacina para todas as pessoas e pela volta do auxílio emergencial para combater a fome e a miséria.
Vimos nos últimos anos, surgir no mundo novas versões de um capitalismo autoritário que, incapaz de responder à crise econômica através da democracia liberal burguesa, buscou proposições de fechamento de regimes, aumento da coerção estatal e da divisão da classe trabalhadora com o ascenso do racismo e da misoginia. Ao mesmo tempo, vimos grandes mobilizações, que não se interromperam mesmo diante de uma pandemia. A principal referência para o Brasil foram as manifestações americanas, reivindicando o direito à vida da população negra – que além de ser cotidianamente assassinada pela polícia, teve índices absurdos de mortes pela Covid – que se espalharam por todo mundo ocidental. No entanto, mobilizações massivas também ocorreram no Chile, conquistando uma nova constituinte, na Argentina pela legalização do aborto, na Polônia, iniciando um processo de democratização muito forte, na Índia com as marchas de camponeses contra os cortes nos direitos trabalhistas, no Líbano, etc. As mulheres tiveram participação crucial em todos esses movimentos, com o devido destaque à Argentina e Polônia, onde o feminismo segue como principal polo organizativo da classe trabalhadora.
No Brasil, vivemos uma constante tensão entre os avanços autoritários de Bolsonaro e a capacidade de resposta dos setores democráticos. Certamente, uma derrota importante para Bolsonaro foi a saída de Donald Trump da presidência nos Estados Unidos. Por outro lado, a invasão do Capitólio no dia 06 de janeiro, nos deixa evidente que o movimento incitado por Trump ainda respira com mais força do que gostaríamos. Também é evidente o peso mobilizador da misoginia e de expresões de supremacia branca para esses grupos.
No início de 2020, Bolsonaro avançava cada vez mais em seu discurso contra as instituições democráticas, participando em mobilizações pelo fechamento do STF, por exemplo. As respostas das torcidas organizadas e do movimento negro nas ruas tiveram grande impacto em frear essas movimentações. Além disso, as eleições municipais foram um fracasso para o Bolsonarismo, com um fortalecimento evidente da centro-direita. As mulheres, e em especial as mulheres negras e trans, desempenharam um papel importante aumentando, majoritariamente pela esquerda, sua participação na política institucional e ajudando a posicionar o PSOL como alternativa política. Aqui é importante enfatizar a grande disputa feita por Boulos em São Paulo, a vitória de Edmilson em Belém, e a eleição de nossas candidatas – Vivi Reis (PA), Luana Alves (SP), Mulheres por + direitos (SP), Ativos (SP) e Érika Hilton (SP). Mais recentemente, vimos atos de violência política contra algumas das vereadoras eleitas, como foi o caso de Carolina Iara, Erika Hilton e Samara Sosthenes, demonstrando como a ascensão de mulheres periféricas, negras e trans, é vista como uma ameaça.
No último mês, no entanto, Bolsonaro obteve uma vitória significativa no parlamento. Seu candidato à presidência da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, venceu por ampla maioria, assim como o seu candidato para a presidência do Senado, Rodrigo Pacheco. Este fato aponta para um período duro que enfrentaremos pela frente, pois Lira e Pacheco, em parceria com o Palácio do Planalto, devem comandar a agenda política da reeleição de Bolsonaro. Isso significa, por um lado, o avanço brutal da agenda neoliberal de Paulo Guedes e do mercado como a autonomia do Banco Central, privatizações, a Reforma Administrativa e muitos outros ataques aos serviços públicos. Por outro lado, muitas das propostas conservadoras, que até então não entravam em votação pelas mãos de Maia, devem ser pautadas como as políticas de incentivo ao armamento da população, o excludente de ilicitude (licença para matar), o homeschooling, ataques aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres entre outros. Ademais, as possibilidades de termos um processo de impeachment pautado no congresso, que já eram limitadas, diminuíram imensamente.
Somada ao cenário da profunda crise política, a pandemia do novo coronavírus agrava ainda mais a situação da população brasileira. No marco de mais de 240 mil mortes no país, o saldo é mais profundo do que a somatória de vidas perdidas. A gestão catastrófica de Bolsonaro da pandemia acarretou em dezenas de mortes por asfixia em Manaus, seguidas por outras cidades do norte do país que também tiveram colapso em seus sistemas de saúde. A ausência de um plano nacional de vacinação e a incapacidade de Bolsonaro em negociar compras de doses para alcançar a imunização de toda a população apontam mais do que para sua incompetência, mas para sua intenção em obstruir o acesso à vacina. Além disso, o desemprego atinge marcas históricas no início de 2021, deixando mais da metade das mulheres fora do mercado de trabalho. O auxílio emergencial, que durante 2020 serviu de esteio para evitar o colapso completo da vida das trabalhadoras, foi encerrado no último mês apontando para uma conjuntura de calamidade social. Nesse período milhões de brasileiros entram para a miséria e a fome volta ao centro do debate político em nosso país.
Não temos dúvidas que as principais afetadas por essa situação são mulheres, especialmente as racializadas e chefes de família. A situação social agrava ainda mais a vulnerabilidade para a violência machista, depois de um período que vimos um aumento assustador do feminicídio e da violência doméstica. As mulheres sofrem de maneira brutal com a sobrecarga de trabalho intensificada pela pandemia. Somam-se às inúmeras responsabilidades tradicionalmente incubidas a elas, o cuidado em tempo integral das crianças, idosos, pessoas com deficiência e enfermos, as tarefas domésticas redobradas, além das jornadas de trabalho formal. Uma pesquisa da Gênero e Número apontou que, durante a pandemia, metade das mulheres brasileiras passou a cuidar de alguém por quem não se responsabilizava anteriormente. Também cabe ressaltar que são elas as que formam majoritariamente as fileiras de trabalhadoras do cuidado, seja na saúde, área tão impactada pela pandemia, ou mesmo no trabalho doméstico. Os índices de desemprego, por outro lado, se alargam principalmente nas costas das mulheres. Recentemente, o IBGE divulgou que a pandemia deixa mais da metade das mulheres fora do mercado de trabalho. No próximo período, enfrentaremos um desafio grande em debater um projeto de país que garanta trabalho, alimentação e vida digna para as mulheres.
Apesar da vitória parlamentar, o desgaste de Bolsonaro tem crescido diante do contexto da pandemia. Recentemente a aprovação do presidente caiu de 37% para 26% (EXAME/IDEA). Uma importante expressão da indignação com a atuação de Bolsonaro diante da crise que vivemos foram as carreatas que ocorreram nos domingos do final de janeiro em diversas cidades, além dos fortes panelaços.
A conjuntura dos últimos anos tem colocado o movimento de mulheres como um polo forte de oposição ao crescimento da extrema direita, não só como um setor que se habituou a tomar as ruas, mas também como polo de elaboração política e programática de uma saída para a crise capitalista. Se esses acúmulos não se perderam, é verdade também que, no Brasil em específico, houve alguma retração do movimento feminista para uma fase mais inicial das mobilização. Uma vanguarda feminista foi às ruas diante do caso do estupro da menina do Espírito Santo, fazendo uma denúncia importante à ministra Damares Alves, e de maneira mais ampliada diante o caso do julgamento de André Camargo pelo estupro de Mari Ferrer. A pauta do combate à violência contra as mulheres tem se mostrado, por um lado, um importante elemento de mobilização das mulheres em especial quando casos concretos irrompem e nos levam às ruas, e também, por outro lado, como uma via de massificar ainda mais a luta feminista, considerando que são pautas que dialogam com uma maioria de mulheres.
No entanto, é necessário que o movimento feminista conquiste mais protagonismo nas mobilização pelo impeachment de Bolsonaro, por vacina para todas as pessoas e pela volta do auxílio emergencial para combater a fome e a miséria. Dessa forma, se tornam nossas tarefas políticas nesse início de ano agitar as conquistas internacionais do movimento feminista, e fazer a ponte das pautas mais imediatas de violência contra mulher com a necessidade premente da derrota de Bolsonaro, e a construção de um projeto político alternativo.