A cruzada do bolsonarismo contra a autonomia das mulheres
O movimento feminista deve se manter vigilante para defender as tímidas conquistas que tivemos até aqui.
As conquistas no campo dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres sempre se deram a passos lentos no Brasil. O acesso ao aborto, mesmo nos casos garantidos por lei – quando a gravidez é decorrente de estupro, quando há risco de morte para a mãe ou no caso de anencefalia do feto – já encontrava entraves estruturais por conta da dificuldade de obter informações. Sempre houve pouca divulgação sobre a existência do direito ao aborto legal e seus critérios bem como quase nenhuma informação sobre onde encontrar este serviço. Esse cenário de desinformação sempre obstruiu o acesso pleno aos direitos sexuais e reprodutivos. Mas desde 2019, com a eleição de Bolsonaro, a saúde sexual e reprodutiva das mulheres brasileiras vêm sendo ainda mais ameaçada pelo aprofundamento das pautas conservadoras e fundamentalistas defendidas pela base de apoio ao governo no Congresso Nacional. O projeto de desmonte das políticas de aborto legal defendido pelo Governo Federal sempre foi uma prioridade do bolsonarismo e, desde a Constituinte, nunca havíamos tido um governo tão empenhado em promover retrocessos nesse campo.
A Frente Parlamentar Mista Contra o Aborto e em Defesa da Vida, criada no final de 2019 no Congresso Nacional e capitaneada pela deputada federal Chris Tonietto (PSL-RJ), reúne vários parlamentares antiaborto, incluindo o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e a presidente da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara (CCJ), Bia Kicis (PSL-DF). Esse bloco tem se movimentado ostensivamente contra a autonomia reprodutiva da mulher: ao longo de 2020 foram apresentadas 62 proposições no campo dos direitos sexuais e reprodutivos na Câmara dos Deputados e Deputadas sendo 46 propondo punições mais severas contra a interrupção voluntária da gravidez. Dentre os projetos apresentados, está o PL 2893/19, que visa revogar o direito ao aborto quando não há outro meio de salvar a vida da gestante e o aborto no caso de gravidez resultante de estupro, e o PL 232/2021, que quer tornar obrigatória a apresentação de boletim de ocorrência com exame de corpo de delito que ateste o estupro para a realização do aborto. A proposta de criação do Estatuto do Nascituro, que visa definir que a vida humana começa a partir da concepção e pretende impedir o aborto em qualquer instância, classificando-o como crime hediondo, e identifica o estuprador como “pai” da criança, tornando-o responsável pelo pagamento de pensão alimentícia à vítima, tem sido constantemente ressuscitada por parlamentares conservadores antiaborto. O Projeto de Lei 5.435/20, que ficou conhecido como o retorno do “Bolsa Estupro” pretendia criar um incentivo financeiro para que vítimas de estupro não abortassem, mas foi engavetado diante da mobilização do movimento feminista.
Nem mesmo a crise sanitária desencadeada pela pandemia do coronavírus diminuiu os esforços para atacar os direitos das mulheres. No primeiro semestre de 2020, usando a própria pandemia como justificativa, serviços de saúde sexual e reprodutiva foram suspensos, assim como o fornecimento de métodos contraceptivos em alguns locais. O presidente Jair Bolsonaro, ao invés de garantir que mulheres e meninas tivessem acesso a cuidados de saúde e apoio essenciais durante a crise sanitária, ignorou orientações de especialistas sobre o tema, puniu os responsáveis pela nota técnica do Ministério da Saúde que recomendava melhorias nos serviços de abortamento legal. Houve também a redução no números de hospitais que realizam o aborto em casos previstos em lei. O caso da menina de 10 anos do Espírito Santo exemplifica bem o retrocesso que vivemos. Ela enfrentou dificuldades para ter assegurado seu direito de interromper a gravidez após estupro e precisou ser transferida para outro estado após um hospital se negar a realizar o procedimento que deveria ser garantido por lei. Alguns meses após, em agosto de 2020, o ministério da saúde lançou a Portaria 2282, exigindo a ocorrência policial no caso de aborto para gestação em decorrência de estupro, e incluindo dois procedimentos no processo de interrupção legal da gestação: a exibição de ultrassom do feto para a mulher e a leitura de uma lista de riscos decorrentes do procedimento de aborto legal – medidas que só servem para constrangem a vítima e deixar o processo do aborto ainda mais traumático, contrariando os acordos internacionais de direitos humanos que visam a proteção emocional e psicológica da mulher.
A postura conservadora do Brasil em espaços internacionais tem sido constantes: na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, em novembro de 2019, o embaixador brasileiro se posicionou contra a legalização do aborto e em defesa da vida desde à concepção, sendo criticado por organizações de diversos países; o Brasil assinou uma declaração internacional antiaborto, que foi puxada pelo antigo governo norte-americano de Trump, junto com países ultraconservadores europeus e árabes; em votação sobre direitos sexuais e reprodutivos na ONU, o Brasil de absteve do voto por estar em desacordo com expressões como “igualdade de gênero” e defendeu que o debate sobre direitos reprodutivos incentiva o aborto e fere o direito a vida.
O governo de Bolsonaro tem em seus ministérios nomes que fortalecem a estratégia de desmonte dos direitos sexuais e reprodutivos. Rafael Câmara, Secretário Nacional de Atenção Primária à Saúde, do Ministério da Saúde, defende a abstinência sexual como forma de prevenir gravidez indesejada, campanha encabeçada pela ministra fundamentalista Damares Alves e que tem encontrado eco em Câmaras Municipais e Assembleias Legislativas pelo país através de projetos medievais. Rafael esteve por trás da nota técnica que o ministério da saúde lançou recentemente proibindo a telemedicina “em situação de aborto” durante a pandemia de coronavírus, firmando o compromisso do ministério com a campanha antiaborto do governo federal.
Mais recentemente, o governo federal apresentou ao Congresso um projeto de lei que tem por objetivo reforçar estratégia de coesão de sua base fundamentalista através do ataque aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. O PL consiste na criação do Dia Nacional do Nascituro e de Conscientização dos Riscos do Aborto, em 8 de outubro. Esta é mais uma tentativa de tentar emplacar a proteção da “criança por nascer”, reforçando a narrativa de que a mulher que escolhe não prosseguir com uma gestação indesejada não passa de uma “assassina”, mesmo nos casos previstos em lei. Na última semana, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, como se não tivesse outras preocupações em meio à maior pandemia do século que já matou mais de meio milhão de brasileiros, se ocupou de suspender o efeito de uma resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) que defendia a garantia do “direito ao aborto legal”. Vale sublinhar: o documento não defendia a ampliação do acesso ao aborto. Mas ainda assim, Queiroga cedeu à pressão dos bolsonaristas que fantasiavam que o Coselho estava legalizando o aborto através de tal medida.
A obsessão dos homens pelo controle do corpo das mulheres vem de muitos séculos, desde quando o útero, através de uma ótica religiosa, passou a ser entendido como um receptáculo divino e as doenças que acometiam as mulheres, como castigo. Esta delirante ideia foi construída por homens que não tinham o menor conhecimento sobre os nossos corpos e, ainda assim, insistiam em discursar sobre o quê as mulheres deveriam fazer consigo mesmas, como e quando deveriam engravidar, trabalhando pelo cerceamento da autonomia feminina. Mesmo após tantos séculos, as decisões e leis que impactam diretamente o corpo das mulheres são tomadas por homens que ainda se apoiam em teorias já refutadas, carregadas por valores dos tempos da Inquisição.
O objetivo era (e ainda é) transformar as mulheres em sujeitos obedientes, sendo o controle de seus corpos uma ferramenta política do patriarcado de constrangimento à nossa liberdade. Obrigar gravidezes indesejadas a progredir contra a vontade da gestante significa decretar seu destino à revelia de seus planos ou vontades. Desta maneira, traçam nossos caminhos em um roteiro que se esforça em evitar o objetivo de uma vida livre e autônoma para nós mulheres. A este cenário se somam as faltas de políticas de apoio às mulheres mães, a precarização dos serviços públicos, o trabalho do cuidado relegado ao âmbito privado sem nenhuma responsabilização dos governos. E nossas histórias vão, desta maneira, se repetindo.
O debate sobre o aborto desta maneira, permeado por uma régua moral irracional, ignora que se trata, na realidade, de uma questão de ética privada e de saúde pública. Não é papel do Estado ou da Igreja determinar qual deve ser a decisão da mulher sobre seu próprio corpo, mas é incumbência dela própria, munida de seus valores pessoais, suas condições de vida e seus planos privados, decidir sobre seu destino. Ademais, o aborto é uma realidade da vida das mulheres. A Pesquisa Nacional do Aborto, a mais completa e séria produção científica brasileira sobre o assunto, revelou que 1 em cada 5 mulheres aos 40 anos já realizou um aborto, a maioria tento abortado entre 20 e 24 anos. Estas mulheres hoje têm filhos e são 56% católicas e 25% evangélicas. O que a criminalização do aborto faz é tornar essas práticas clandestinas, fazendo com que sejam muito mais inseguras. A clandestinidade do aborto faz com que as mulheres que tem condições arcar com os custos das caras clínicas clandestinas paguem pelo aborto e as que não possam custear este atendimento recorram a métodos inseguros, insalubres e, muitas vezes, mortais. A criminalização, além de não proteger a vida das gestantes, coloca o aborto clandestino como a quarta causa de óbito materno no Brasil.
A interdição religiosa e moral do debate também acarreta a fragilização do campo de pesquisa que se dedica ao estudo de dados e consequências da clandestinidade do procedimento no país, tanto por uma perseguição às pesquisadoras que se dedicam ao tema – como acontece há anos com a Professora Débora Diniz – como por conta da subnotificação de casos de aborto provocado ou mesmo de gravidez após estupro, devido ao medo das mulheres serem ainda mais humilhadas e confrontadas pela sociedade e pelo Estado. Ademais, quando a mulher que deseja interromper sua gravidez não é acolhida pelo estado, perdemos a oportunidade de abordá-la em um momento crítico no qual seria possível aconselhá-la sobre planejamento reprodutivo, uso de anticoncepcionais, identificação de situações de violência doméstica e apoio psicológico.
No entanto, a cruzada do bolsonarismo contra nossos direitos sexuais e reprodutivos vai além pois não se contenta em defender a criminalização do aborto, mas avança no sentido de retroceder na legislação atual. Cercear o direito de uma garota de 10 anos ao aborto legal após um estupro, gestação esta que, além de tudo, era um risco para a vida da menina, demonstra que o intuito é intensificar o cerceamento de nossa autonomia e fazer com que os poucos direitos conquistados até aqui caiam por terra. E o mesmo movimento observamos nas diversas outras iniciativas sobre as quais discorremos anteriormente.
O movimento feminista deve se manter vigilante para defender as tímidas conquistas que tivemos até aqui. Mas é importante ressaltar: para garantir nossos direitos e para abrir caminho para avançar cada dia mais a um futuro de autonomia e liberdade das mulheres, precisamos derrotar Bolsonaro e o bolsonarismo. Eles nos querem subservientes, presas ou mesmo mortas, mas nós nos queremos livres e este caminho será pavimentado através da derrota dos conservadores, fundamentalistas e inimigos das mulheres.