Por um feminismo anticapacitista: construindo um mundo sem violência para todas
As mulheres com deficiência também vivenciam o machismo cotidianamente, mas são distintas em suas diversidades, e sujeitas ao capacitismo.
Historicamente, os corpos de pessoas com deficiência são aqueles que as outras pessoas têm nojo, medo, que possui falhas, e que produz pena. Contudo, eles também provocam curiosidade e fetiche, pois muitas pessoas acreditam que esses corpos têm licença para serem tocados, puxados, e ajudados a todo o momento.
Em razão dessa construção social, as mulheres com deficiência enfrentam dois agravantes: o machismo e o capacitismo. A mulher com deficiência é vista como um objeto sexual, um corpo que tem permissão para sofrer abuso, pois as pessoas acreditam que ela não pode se defender.
De acordo com Andrade, (2015), a lógica capacitista se configura como uma mentalidade que lê a pessoa com deficiência como não igual, incapaz e inapta tanto para o trabalho, quanto para cuidar da própria vida, e tomar suas próprias decisões enquanto um sujeito autônomo e independente.
Sabemos que isso se deve ao fato de que construiu-se um ideal de corpo para a espécie humana, e quem não corresponde a este ideal, é tido consciente ou inconscientemente, como menos humano.
Dessa maneira, as mulheres com deficiência, acabam vivenciando a exclusão, já que a sociedade vê seus corpos como incapazes e imperfeitos. Para além disso, a invisibilidade das pautas das pessoas com deficiência faz com que elas também enfrentem a dificuldade de pontuar a diversidade de seus corpos dentro do próprio movimento feminista.
Outros desafios impostos a essas mulheres são a falta de pesquisas científicas em relação à violência que elas sofrem e a subnotificação de dados ou até mesmo a falta deles, o que dificulta a articulação de políticas públicas que sejam acessíveis. Um exemplo recente disso foi a publicação do Atlas da Violência de 2020, que não trouxe dados a respeito da violência que é praticada contra as pessoas com deficiência.
Nesse ano pela primeira vez o Atlas trouxe esses dados. Eles são alarmantes e precisam ser divulgados para que todos entendam a gravidade da situação. É de suma importância destacar que os próprios profissionais que realizaram a pesquisa constataram que os dados são extremamente limitados.
De acordo com o Atlas 2021, a taxa de violência contra as mulheres com deficiência é mais que duas vezes superior à taxa de violência contra os homens com deficiência e as mulheres com deficiência intelectual são aquelas que mais sofrem violência.
Os dados relativos às pessoas com deficiência também mostram que a violência doméstica está presente na grande maioria das denúncias, representando mais de 58% dos casos, sendo seguida de violência comunitária que atinge 24% dos casos. Se fizermos um recorte de gênero, as notificações de violência contra a mulher totalizam 61% dos casos.
O Atlas revela ainda, com relação a esta população, que em relação à faixa etária, a maior concentração de notificações é para vítimas de 10 a 19 anos. Novamente podemos verificar um maior número de notificações entre as meninas e mulheres, que representam 4540 casos, enquanto os homens representam 2572 casos, deixando evidente que as meninas e mulheres sofrem com uma dupla vulnerabilidade em relação aos homens: em razão do gênero e da deficiência.
Outros dados relevantes neste aspecto são aqueles relacionados aos tipos de violência sofrida pelas pessoas com deficiência. Segundo o Atlas 2021, a violência física, presente em 53% dos casos, é seguida de violência psicológica, 32%, da negligência/abandono, 30%, e da violência sexual, que se destaca entre as pessoas com deficiência intelectual, 35%. As taxas de violência sexual e psicológica também são mais altas para as mulheres, 36% e 28%, respectivamente, e para os homens, 26% e 10%.
Portanto, mesmo com os obstáculos de âmbito público, privado e afetivo, as taxas de denúncia são altas, o que deve ser um alerta para os profissionais da área da saúde, da assistência social, da educação, e para os conselheiros tutelares que atuam junto aos equipamentos da rede pública.
O que os citados dados demonstram é a necessidade de um amplo debate a respeito desse tema, que deve envolver a família, as instituições que trabalham para promoção de direitos das pessoas com deficiência, as organizações sociais, movimentos sociais, escolas, universidades, profissionais da saúde e funcionários das delegacias de atendimento a mulheres vítimas de violência com o objetivo de pensarmos em políticas que incluam de fato essas pessoas.
Ademais, é necessário escutar e dialogar com os movimentos de pessoas com deficiência, como por exemplo, o Coletivo Feminista Helen Keller de Mulheres com Deficiência, que possui uma ampla produção de textos, cartilhas e materiais essenciais para entendermos e compreendermos essas realidades distintas que, infelizmente, são desconhecidas pela grande maioria da população.
Tarefa importante para os movimentos feministas é entender que as mulheres com deficiência também vivenciam o machismo cotidianamente, mas são distintas em suas diversidades e sujeitas ao capacitismo e, por isso, é fundamental tornar possível sua participação nesses movimentos com real acolhimento de suas pautas.
E para isso é preciso que nós façamos campanhas acessíveis, com audiodescrição, legendas, linguagem simplificada, tradução e interpretação em libras e desenhos para que as meninas e mulheres com deficiência intelectual também sejam contempladas e informadas de seus direitos. Se quisermos que a nossa sociedade seja acessível, a inclusão é uma proposta.
Referências:
ANDRADE, S. Capacitismo: o que é, onde vive, como se reproduz? As gordas. 2015. Disponível em: <https://asgordas.wordpress.com/2015/12/03/capacitismo-o-que-e-onde-vive-como-se-reproduz/> Acesso em: 13 nov. 2017.
Coletivo Feminista Helen Keller de Mulheres com Deficiência: https://www.instagram.com/coletivohelenkeller
Atlas da Violência 2021: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/publicacoes