Resposta à Djamila Ribeiro
Uma defesa do transfeminismo.
Djamila Ribeiro, em sua coluna no jornal Folha de São Paulo, iniciou, ontem, uma polêmica rasa com o transfeminismo. Uma polêmica que já nos é conhecida nas redes sociais, vinda de quem defende uma supremacia cisgênero sobre os debates feministas, os direitos sociais e a própria vida, as cisativistas radicais.
No artigo, a filósofa tergiversa sobre universalismo e determinismo biológico, categorias fundamentais ao feminismo que, diga-se de passagem, são desprezados pela corrente de supremacia cisgênera, derivada do radfem, com quem ela flerta.
Escreve Djamila: “Como mulher, me perturba o fato de sermos restringidas às nossas funções biológicas, como se não fôssemos seres humanos completos, seres sociais e sujeitos políticos”. Ora, reconhecer que não são apenas mulheres que menstruam (e que, aliás, há mulheres que não menstruam, inclusive algumas cisgênero), não é justamente desvincular tal função biológica do “ser mulher”? Reconhecer que a identidade “mulher” pode ser vivida de diversas formas? Que não se deveria pensar numa só forma de corpo e de socialização das mulheres, um tipo ideal de mulher, uma “mulher universal”, sob uma sociabilidade capitalista, racista e patriarcal? Estranho, portanto, que Djamila cite diversas feministas negras cisgênero que em muito contribuíram para o entendimento interseccional do “ser mulher”. Feministas estas que servem de referência para o próprio transfeminismo, como nos ensinou a Drª Jaqueline Gomes de Jesus, mulher negra e transgênero, professora do IFRJ, em tantas de suas produções.
Ainda no referido artigo, escreve Djamila: “É interessante que a categoria homem segue intocável – não há publicações se referindo a eles como “pessoas que ejaculam”, por exemplo.”. Aqui, devo crer que ela jamais se interessou em dialogar com as produções transfeministas e com a militância de pessoas trans. Do contrário, o conteúdo do artigo em questão não resultaria de ignorância, mas de desonestidade intelectual. Prefiro acreditar na primeira hipótese. Porque se Djamila se propusesse a conhecer o transfeminismo e a militância trans, saberia que não reduzimos nenhum corpo a uma identidade imposta pelo patriarcado. É comum, sim, que falemos “em pessoas com pênis”, “pessoas que ejaculam [esperma]” e por aí vai. De forma alguma a categoria homem permanecerá intocável pelo transfeminismo. Afinal, enfrentamos o patriarcado ao não menosprezar a existência de homens que têm vagina. E de esfregar na cara dos machistas que não é um treco balançando entre suas pernas que os faz homens: pelo contrário, há muitas mulheres com pênis. Pergunte aos machistas se isso não “toca”, de forma bastante incômoda, suas compreensões de si mesmos e sua pretensão de superioridade.
Mas Djamila também discorre sobre uma questão importante: a necessidade de se reconhecer as diferenças concretas na realidade de diferentes grupos de mulheres, justamente para que tenhamos dados sobre cada um desses grupos que sirvam de base às políticas sociais. A categoria “mulher negra”, como ela diz, é importantíssima para isso, porque esse grupo de mulheres vive uma realidade bastante diferente da vivenciada por mulheres brancas. Considerando essa preocupação (bastante válida), por que então Djamila não critica a total ausência de dados oficiais sobre pessoas transgênero no Brasil? Por que ela não se preocupa com a ausência total de dados sobre travestis e mulheres trans negras, as que mais são vítimas do transfeminicídio e das diversas formas de subalternização transfóbica? Tais dados deveriam estar incluídos nas pesquisas sobre a realidade das “mulheres”, mas estas só reconhecem mulheres cis.
Compreender o feminismo e a própria categoria de mulheridade leva em consideração reconhecer que estas categorias são coligações. Que o feminismo é uma unidade entre grupos diversos de mulheres. Uma unidade (e não universalidade), que se define por uma realidade em certo nível comum a todas nós. Que como mulheres, somos todas subalternizadas pela sociabilidade vigente. E que reconhecer coligações/unidades como “pessoas que menstruam”, “mulheres”, “mulheres negras” etc., não deve servir para encobrir diversidades presentes nessas próprias categorias. Porque, entre mulheres, há negras, brancas, cis, trans, com e sem deficiência, magras e gordas e um grande et cetera. E é engraçado ter que explicar novamente isso para a colunista, que há poucos anos chamou Letícia Parks, uma mulher negra, de “clarinha” e desconsiderou sua militância antirracista, simplesmente por ter sido alvo de discordância política. Talvez, com medo do universalismo, Djamila tenha querido, naquele momento, enterrar o conceito de “mulher negra”, simplesmente porque, dentro dessa unidade (e ainda mais no Brasil), há uma diversidade de formas de “ser negra”, a qual a pele retinta é apenas uma delas.
Mas desta vez, o que Djamila busca esconder por trás de subterfúgios retóricos, é que não é a “intocabilidade” da categoria homem ou um perigo universalista o que lhe incomoda. O que ela gostaria de ver é a preservação e a supremacia de uma única forma de identificar-se como mulher, aquela que decorre de uma relação cisnormativa com o que é imposto pelo patriarcado. Como muitas cistavistas radicais, Djamila não quer ter que lidar com o privilégio conferido pela sua identidade de gênero, sua cisgeneridade. Djamila, seguindo os passos de outra feminista que se perdeu da mesma forma, Chimamanda Adichie, não aceita o fato de que não é “mais mulher” do que uma mulher que nasceu com pênis. Não é uma “mulher de verdade”, uma mulher “biológica”, uma mulher “mulher mesmo”, como se autodenominam diversas transfóbicas que desprezam a categoria “cisgênero” e essencializam sua forma de viver a mulheridade.
Djamila é, sim, uma mulher, como tanto precisou reivindicar em seu artigo. Cabe, agora, reconhecer (e aceitar) que se trata de uma mulher cisgênero. E isso significa muita coisa (e muito privilégio) num mundo patriarcal.