Uma alternativa feminista à extrema-direita
A única forma de derrotar a extrema-direita é construindo nas ruas uma política alternativa.
Nem todas devem lembrar, mas em 2008 a bolha imobiliária dos Estados Unidos estourou e deu início a uma crise econômica mundial. Empresas e bancos imensos faliram da noite para o dia e milhares de pessoas perderam suas moradias. Os governos rapidamente agiram para salvar os bancos e as empresas, mas as pessoas seguiram sem casa, foi aí que começou. A crise foi avassaladora e o capital, com apoio de seus representantes, avançou rapidamente sobre diversos aspectos da vida. As políticas de austeridade ditavam que era preciso conter gastos públicos, os preços subiram, os espaços coletivos de diversos povos começaram a ser tomados de assalto. Mas a resposta foi efusiva, em todo mundo movimentos anti-austeridade imensos se organizaram para responder à crise de sua forma, os americanos e europeus ocuparam os centros financeiros, os egípsios ocuparam a praça Tahrir dando força à Primavera Árabe que se iniciara na Tunísia e um pouco mais tarde jovens brasileiros foram às ruas do país inteiro gritando que preferiam ter dinheiro para a saúde e para a educação do que sediar uma Copa do Mundo que só servia aos interesses do capital estrangeiro.
Essas mobilizações tinham reivindicações concretas e críticas aos regimes políticos que implementaram as políticas de austeridade necessárias para que o capital seguisse lucrando, mas com pouco horizonte estratégico. Dessa forma, estava aberta a disputa de qual seria a alternativa à forma como se organizava a vida até aqui. Se por um lado, logo surgiram alternativas autoritárias que reivindicavam o fortalecimento da família nuclear, o individualismo e o racismo como maneiras de superar os problemas de parcelas da população, do outro lado surgiu a quarta onda do feminismo.
A primavera feminista que talvez tenha como principal marco o ano de 2015 no Brasil com o Fora Cunha, mas que se estendeu bem além com a Greve Internacional de Mulheres de 2017 e o Ele Não, foi a principal alternativa política à crise multifatorial do capitalismo que ainda vivemos. Ela foi disputada e ainda o é pelo feminismo liberal, em especial na dimensão cultural, mas teve um forte viés anticapitalista, compreendendo que as reformas neoliberais dificultariam muito a vida da maior parte das mulheres, que a violência machista tinha forte relação com a precarização dos serviços públicos e que a exploração do trabalho nos colocava em situação de grande vulnerabilidade. Em geral, sua maior insuficiência foi a capacidade de organização que apenas um partido poderia cumprir, ainda que no Brasil o PSOL tenha conseguido ser uma forte referência para o movimento.
Apesar da força do feminismo, sua dificuldade organizativa e a dificuldade dos partidos de esquerda em disputarem a indignação do povo abriu um largo espaço para a consolidação da alternativa autoritária à crise, e por todo mundo governos de extrema-direita se elegeram com amplo apoio da população, como foi o caso de Bolsonaro.
No entanto, para a burguesia a forma ideológica da dominação é mais cômoda do que a violência explícita do fascismo e há em curso uma reorganização dos regimes políticos que habitavam o mundo antes de 2008. Dessa forma, Biden conseguiu derrotar Sanders nas prévias do Partido Democrata e derrotar Trump nas eleições, agora lidera os Estados Unidos, da mesma forma Lula conseguiu rearticular os setores que defendiam a república brasileira para derrotar Bolsonaro, e contra o fascismo nós defendemos essa república. Enquanto isso, outras forças disputam a direção do capital internacional com outros regimes políticos autoritários, como a China e a Rússia. Ainda que culturalmente haja uma maior distância entre nós e esses setores, economicamente já há uma influência imensa da China sobre o Brasil. Apesar da importância do que foi a Revolução Chinesa, o país que setores da esquerda tentam apresentar como alternativa, hoje a China é apenas outro polo de imperialismo capitalista, não melhor que aquele representado pelos norte-americanos.
Nesse contexto, nossa tarefa prioritária no Brasil segue sendo derrotar o setor de extrema-direita que o bolsonarismo organizou, mas que seguirá vivo com ou sem Bolsonaro. E da mesma forma, enfrentar as formas mais violentas e autoritárias da burguesia ao redor do mundo. A tarefa não é fácil, porque a reestruturação do regime político reanima uma forma morta, que não tem condições de responder efetivamente à crise. Ao mesmo tempo, tem uma capacidade enorme de silenciar as lutas. O discurso de que não podemos revindicar nada para manter o governo de Lula em pé pode se tornar um peso mórbido sobre muitos que temem o fascismo. Mas nós sabemos que a única forma de derrotar a extrema-direita é construindo nas ruas uma política alternativa, que de fato responda ao desemprego, ao custo de vida e à vontade de viver, sonhar e criar da juventude. Isso só será possível se conseguirmos organizar as lutas que eclodirem em torno de um programa político alternativo, construído de baixo para cima. E o feminismo tem um papel essencial nesse contexto, pois já tem um grande acúmulo programático que conquistou mentes e corpos de milhares de mulheres e jovens ao longo dos últimos dez anos.